terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

O Carrinho de Linha Azul
de Anne Tyler

Lar doce lar


Por vezes, existem livros que capturam pedaços da vida real, quotidiana, de uma forma tão crua e humana que transformam gente e acontecimentos vulgares em fenómenos extraordinariamente tocantes.
É esse talento que a norte-americana Anne Tyler consegue colocar nas páginas de O Carrinho de Linha Azul (Editorial Presença, 2017), um livro que transforma o mundano em arte através da história “simples” de uma família que respira humanidade sui generis por todos os poros.

Tyler, autora de livros como No Tempo em que Éramos Adultos, conta-nos a história da família Whitshank, um clã de gente comum, «como a maioria de nós, insuportável mas agradável». E isso transparece no perfil da maioria de personagens mergulhados nas suas vidas mas forçados a acarinhar o seu próximo, por via de comportamentos, ora complexos, ora aborrecidos, difíceis, egoístas ou apaixonados.

Através de uma escrita simples, inteligente e muito cativante, quase como que segredando os acontecimentos, Anne Tyler transforma as páginas, ou meros parágrafos, em pequenas descrições ou diálogos apontados diretamente para o âmago da nossa alma, especialmente como os personagens são apresentados de uma forma desarmante e eficaz, acrescentando como bónus finais de capítulo uma teatralidade que nos leva a imaginar um fechar de cortinas, um ponto final, por vezes parágrafo.

Desde os primeiros momentos, reconhecemos Abby, a matriarca, como uma mãe dedicada e de assinalável consciência social, e Red, seu marido, como alguém mais crítico e cético. Os quatro filhos do casal, três legítimos e outro adotado, são um misto de virtudes e problemas, como todas as «crianças, mesmo que depois de adultas». Denny é inteligente, egoísta e dono de uma rebeldia que o leva a mudar constantemente de vida; Amanda, advogada, tem uma personalidade forte e decidida, e encara os desafios de frente; Jeannie é uma pessoa discreta, muitas vezes “abafada” pelos habituais dramas da família; Stem, o adotado, e louro, que está sempre disponível para ajudar. E depois há ainda o Hugh da Jeannie, o Hugh da Amanda, as crianças de todas, as cadelas, os familiares indiscretos ou os vizinhos da casa de férias.

À medida que Abby e Red envelhecem, os problemas acentuam-se. Abby tem cada vez mais episódios de esquecimento, Red é uma pessoa mais frágil depois de um ataque cardíaco e está a ficar mais surdo. Em resposta a essa situação, os filhos decidem ajudar e mudam-se para a velha e especial casa Whitshank. Stem, primeiro, Denny depois.

Estão assim lançados os dados para o regresso de rivalidades antigas, amores nunca esquecidos e flashbacks ao passado familiar que se combinam com histórias de vida moderna. Tudo envolto do ambiente ora frio ora quente, que nem as ventoinhas do teto acalmam, de uma Baltimore tão cara a Tyler, contemporânea, descrita devagar, suavemente, apesar de alguns acessos intempestivos dos membros da família.

Para ser lido como uma espécie de álbum de família, O Carrinho de Linha Azul é um relato fascinante, pessoal e repleto de personagens fascinantes, encarceradas entre a solidariedade, o aborrecimento e a preocupação, e por vezes presas em inteligentes laivos satíricos, mas sem nunca levar Tyler a cair na tentação de um discurso facilitista.

In Rua de Baixo

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