domingo, 14 de agosto de 2016

“O Pavilhão Púrpura”
de José Rodrigues dos Santos

O mundo à beira do abismo


O projeto de escrever uma saga, algo inédito no universo literário nacional, revelava-se envolto de contornos ambiciosos logo à partida. Avesso a controvérsias e dificuldades, José Rodrigues dos Santos comprometeu-se com essa tarefa hercúlea e começou a “desenhar” uma trilogia que tem em “O Pavilhão Púrpura” (Gradiva, 2016) o seu segundo e muito aguardado tomo.

Pegando nas (muitas) pontas soltas de “As Flores de Lótus”, Rodrigues dos Santos faz-nos regressar às deambulações de Fukui, Artur, Lian-hua e Nadija, quatro «pessoas ordinárias que se viram em situações extraordinárias e que, pela forma como as souberam superar, se tornaram elas próprias extraordinárias».

Se no primeiro volume da trilogia o leitor era convidado a entrar num filme cujo fio condutor tinha por base o forte pendor revolucionário que se sentia no final do século XIX e inícios dos anos 1900, e que fazia cair alguns regimes e ideais em favor de outros, em “O Pavilhão Púrpura” o epicentro da estória centra-se no «voraz capitalismo» e nas marcas que esta nova visão económica cravou nas democracias, principalmente pelo cataclismo que se revelaria a Grande Quebra de Wall Street, conjunto de acontecimentos que não deixam de encontrar um paralelismo com aquilo que hoje vivemos.

Rodrigues dos Santos faz-nos entrar na máquina do tempo e revela os vendavais sociais vividos em Portugal, Japão, China e União Soviética. Assim, Artur, agora major, torna-se numa espécie de braço direito de Salazar e vive na primeira pessoa as estratégias que o ambicioso ministro das finanças, cujo rigor orçamental provocou o desespero entre os militares abrindo assim alas para um descontentamento crescente.

Enquanto isso, no Japão, o jovem Fukui vê-se no seio de uma dupla revolução. Se, por um lado, tem o coração divido entre a desafiante, bela e quente Harumi e a doce Ren, por outro centra as suas atenções nas mudanças políticas e culturais dos japoneses que começam a abraçar os ensinamentos chegados do ocidente em detrimento das tradições xintoístas e confucionistas. A terrível depressão vivida na Manchúria e os conflitos com a China estão também na ordem do dia.

Também por terras do Oriente, a pequena Lian-hua consegue escapar às garras de Mao Tse-tung e vai para Peiping, entretanto declarada capital, território que sente a invasão japonesa da Manchúria e torna-se num local perigoso para todos. Pesadelo similar vive Nadija na sua União Soviética, principalmente depois de Estaline ter decidido que a vanguarda do pensamento está intrinsecamente aliada à superioridade do comunismo e das consequentes coletivizações, cujo preço se traduz em fome, miséria e uma servidão sem limites em nome de um “ideal”. Para tornar ainda tudo mais complicado, da Alemanha surgem os primeiros ecos da eugenia e higiene racial, propulsionados por uma política nascida da mente de um certo Adolf Hitler.

Com um começo algo morno, “O Pavilhão Púrpura” segue todos os predicados da escrita de José Rodrigues dos Santos, com a ação a dar lugar a uma maior contextualização inicial. Mais uma vez, nota-se um claro domínio do autor na dialética histórica mas a evolução da narrativa revela um menor investimento emocional nos personagens (talvez com a exceção de Fukui) para se focar nos já habituais diálogos académicos repletos de (supérflua) informação que chega, a espaços, a tornar-se contraproducente face ao dinamismo coletivo do romance. Essa questão é ainda mais relevante quando nos deparamos com a riqueza que o narrador pode oferecer à globalidade da trama, esse sim, um “personagem” emocionalmente bem construído, e frágil, cujo sofrimento apenas é denunciado, mais efusivamente, nas derradeiras páginas deste livro.

É também nos últimos suspiros deste romance que a narrativa se revela mais acutilante, principalmente com a trágica peripécia vivida por Nadija, aguçando a curiosidade face ao culminar da trilogia que nos chegará através de “O Reino do Meio”, a ser editado no próximo ano.

In Rua de Baixo

“Um Copo de Cólera”
de Raduan Nassar

Manual de instruções para relações marginais 


Não sendo um autor muito prolífero, o brasileiro Raduan Nassar conseguiu a proeza de marcar a literatura de língua portuguesa através de duas obras fundamentais como “Lavoura Arcaica” e este “Um Copo de Cólera” (Companhia das Letras, 2016), títulos que valeram recentemente ao autor paulista o devido reconhecimento através do Prémio Camões 2016.

Polémico em toda a sua amplitude, “Um Copo de Cólera” foi escrito em 1970, em plena repressão da ditadura militar no Brasil, e apenas viu a luz do dia cerca de oito anos depois. Um livro descrito por muitos como «difícil», é uma novela pós-modernista que versa, e extravasa, a simples ideia de humanidade.

No epicentro de toda a convulsão que é este livro está um casal, uma dupla de amantes que entra num decisivo confronto cujo final parece ser a aniquilação alheia. E como em guerra quase todas as armas são válidas, nas páginas deste (pequeno) livro são vulgares os insultos, a crueldade, o (próprio) sexo ou a vontade de dominar ou ser dominado.

Os espaços de confronto são a cama, a banheira ou a mesa onde se come o pequeno-almoço e é neles, e através deles, que se libertam egos, se oprime o adversário e se diaboliza sobre a própria sociedade e os seus limites, pois não é a catarse que Nassar procura mas sim um puro e deleitoso exorcismo recheado de falsos moralismos.

Além de uma guerra (sexual) sem quartel, os sete capítulos de “Um Copo de Cólera” – escritos de um só pulsar onde apenas existe um parágrafo e o ponto final adquire a forma de preciosa e contextualizadora pausa – cauterizam através de citações, opressões, contradições desabafos, por via de uma linguagem ora poética, ora teatral, mesclando o absurdo com o surreal.

Sem o recurso a perfis de vencedores ou vencidos, Raduan Nassar apela a um desalinho romântico nascido no coração de uma ditadura que marcou não apenas social e politicamente mas também o coletivo emocional de um povo constantemente oprimido, e só através de uma linguagem nua e sem qualquer traço de censura pode chegar-se a um patamar onde o marginal pode desafiar o absolutismo bacoco.

Mais que uma tensa narrativa que se lê num fôlego sobre um arrogante e rude homem mais velho e uma liberal mulher mais nova, este livro, metafórico, mostra a rutura, a raiva, as fronteiras das relações humanas, do próprio machismo ou do maternalismo estéril, de classe e género, através de uma intensidade física, desgastante e complexa.

In Rua de Baixo

“A Rapariga da Banda” de Kim Gordon | “M Train” de Patti Smith

O rock e a vida

Numa altura em que os festivais de música atingem o seu auge por terras lusas, a música transcende a sua forma auditiva e pode assumir o formato livro, nomeadamente através da fusão entre o género biográfico e a crónica.

Dois exemplos disso são “A Rapariga da Banda”, de Kim Gordon (Bertrand, 2016), e “M Train”, de Patti Smith (Quetzal, 2016), livros recentemente editados e que mostram um pouco mais da vida da ex-baixista dos Sonic Youth e da mítica cantora e poeta Patti Smith.

Em ambos os casos, a emoção é o fio condutor para confissões, mais ou menos filosóficas e urbanas, ou pedaços biográficos de uma vida que colocou estas mulheres entre a elite da história do Rock.

Sem índices ou resumos capitulares, onde a forma de compreensão assume-se por via de um crescente sentimento dos números que abrem os seus pensamentos, “A Rapariga da Banda” é um exercício deveras interessante, e muitas vezes emotivo, com Kim Gordon a vestir o fato de (auto)biografa mas que curiosamente inicia as páginas deste livro com um fim, no caso, o último concerto dos Sonic Youth e o processo de luta interior que isso a conduziu.

Pelo meio, conhecemos várias etapas do seu crescimento, a história da sua família, as aventuras nas artes visuais, a sua mudança para Nova Iorque, os homens que lhe assaltaram as emoções, a relação com Coco Hayley, sua filha e, claro está, a música e o seu casamento e divórcio com Thurston Moore e os Sonic Youth.

Esta viagem em forma de livro leva-nos a destinos mais ou menos caros a Gordon, alguns deles quase em piloto-automático. Existem pontas soltas, memórias boas, outras nem tanto, mas no centro de tudo está uma mulher que sabe o que quer, emocional e criativamente, e tem noção das suas escolhas e faz um excelente relato daquilo que é o amor de estar em palco e tocar música.


 Já “M Train” de Patti Smith rege-se por uma abordagem mais experimental, com a autora a definir este livro como «um mapa de estradas» da sua vida cuja narrativa parte do presente, nomeadamente através dos exercícios reflexivos que nascem no “Greenwich Village”, um pequeno café que serve de poiso reflexivo da autora de discos como “Radio Ethiopia” e do nascimento da estética punk.

As 19 estórias, ou estações como lhe chama Patti Smith, fluem entre o onírico e o real, sem uma linha cronológica assinalável mas com o lado mais criativo sempre em destaque, seja o motivo da escrita o simples ato de beber café, assistir a séries policiais ou visitar túmulos de gente conhecida das artes.

O prazer de ler Patti Smith, ou de contemplar os seus retratos polaroid, reside do mais puro sentido nostálgico, e por vezes minimalista, onde se exploram, e dilaceram, obsessões literárias, gostos boémios, viagens quixotescas ou moleskines. Tudo motivos essenciais para uma mulher que confessa não gostar de «nada supérfluo», definindo assim uma rara estética pessoal e (in)transmissível.


In Rua de Baixo