terça-feira, 5 de julho de 2016

“Ouve a Canção do Vento / Flíper”
de Haruki Murakami

Senhoras e senhores, eis o Rato


Os primeiros passos de Murakami enquanto escritor ou aspirante a tal, aconteceram no final da década de 1970, ainda o jovem Haruki centrava quase todas as suas energias ao serviço do clube de jazz que geriu com a sua companheira. O bichinho da escrita já assaltava a alma do japonês e, nas horas vagas, à mesa da cozinha e de esferográfica em punho, atacava maços de folhas em branco.

A medo, e depois de muita hesitação, lá nasceram os primeiros rebentos literários de Murakami que (só) agora chegam às nossas livrarias. Reunidas num mesmo livro, “Ouve a Canção do Vento” / “Flíper, 1973” (Casa das Letras, 2016), são duas singelas fábulas, a resvalar para um território surreal e intimo, que centram as suas narrativas no quotidiano de dois jovens que se conhecem num bar. Tanto o narrador sem nome como Rato vivem fases algo niilistas e sentem a vida a escapar-lhes pela ausência de um sentido inequívoco.

Nestes dois romances – que serviram como génese da tetralogia do Rato, que além destes títulos junta “Em Busca do Carneiro Selvagem” e “Dança, Dança, Dança” – são servidos de bandeja personagens como escritores nascidos de uma fértil imaginação, uma rapariga com quatro dedos na mão esquerda, o dono de um bar que abre o seu espaço, e coração, para as mais diversas confissões, um par de misteriosas gémeas, obsessivos especialistas em máquinas de flipers, gente que come panquecas com refrigerantes, DJ’s com soluços, sem nunca esquecer um universo musical tão caro à pessoa de Murakami.

No caso de “Ouve a Canção do Vento”, Murakami oferece-nos uma quase narrativa linear cujo espaço temporal não se estende além das três semanas, algures no verão de 1970, onde dois jovens se conhecem no bar de Jay, um chinês de semblante tranquilo. O nosso narrador, sem nome, um leitor compulsivo de romances ocidentais, armado com tiradas intelectuais nonsense, trava conhecimento com Rato, um playboy, rico, que se refugia no consumo de cerveja para encontrar o seu caminho. Pelo caminho surge uma rapariga que trabalha numa loja de discos e é fã de Beach Boys. A narrativa, tem como pontos em comum uma certa interação entre estas três figuras explorando, em ritmo de cruzeiro, as dúvidas de uma juventude inquieta.

Ainda que nenhum destes personagens seja esculpido de forma irrepreensível, têm adjacente uma existência unidimensional que pode, a espaços, situar-se no limbo entre a plenitude e um sentimento vago pois “Ouve a Canção do Vento” é pensado como uma abordagem livre face à ideia de romance. Apesar disso, as páginas fluem e existe uma sensação de etéreo desejo que torna o seu todo elegante, com diálogos espartanos e casuais e o recurso a manobras musicais que sublinham uma certa tendência da sobreposição do estilo face à substância.

Sob o mesmo contexto e filosofia, “Flíper” volta a trazer a palco o narrador sem nome e Rato mas a sua contextualização parece estar mais próxima da esfera literária com que Murakami nos conquistou nos romances seguintes. Lançadas as sementes, temos duas estórias paralelas, personagens movidos a cerveja e tabaco, cuja apatia é combatida de fronte de uma máquina de flipers, metáfora para uma certa noção de solidão travada à custa de luzes néon, bolas extras e recordes imbatíveis.

Existe também um ser feminino à procura das frases certas, gatos, referências a cozinhados, música e discos pedidos e perdidos, livros, perseguições a máquinas de jogos desaparecidas (a velha Space-ship…) como descrições da Natureza e dos desejos humanos, figuras tão caras aos (magníficos) romances assinados por Murakami.

In Rua de Baixo

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