segunda-feira, 7 de março de 2016

“O Paraíso segundo Lars D.”
de João Tordo

A Solidão é um Porto de Abrigo 


Depois de ler “O Luto de Elias Gro”, ficaram na memória frases, ideias avulso ou dentro de um especial contexto. A vida e a morte eram tema frequente e o peso do tempo passado, pesada pedra que constrói a vida de um homem presente e em direção ao futuro, deixam feridas que nunca saram.

Naquela ilha remota, cenário desolador desse livro, a dor era denunciada pela natureza individual ou coletiva, por uma nuvem ou vento que teimava em assombrar o clima, já de si invernoso e intrínseco ao Homem que carrega(va) a estação fria da existência.

Delicioso primeiro tomo de uma anunciada e sombria trilogia, “O Luto de Elias Gro” funciona como a antecâmara para “O Paraíso Segundo Lars D.” (Companhia das Letras, 2015) um livro que gira em torno de um quarteto de personagens que reúnem em si uma espécie de outono, um perfil que mistura esperança e ilusão, verdades e mentiras.

Ainda que seja Lars D., um escritor sexagenário cuja vida balança ao sabor das agruras de um cancro, nunca escondendo o desejo ou o dilema da sua supressão, uma figura omnipresente de toda a narrativa, é a voz de sua mulher que nos relata e retrata os episódios que constituem esta obra.

Ao longo das duas centenas de páginas ficamos a saber mais sobre a vida desse casal, um dueto, de início improvável e envolto de um determinismo cliché, refém de ecos do passado, de memórias que navegam entre bons e maus presságios, entre comédias e tragédias, através das quais se «reconstrói uma cartografia emocional do seu casamento, que é afinal um mapa de solidão e afetos».

São esses sentimentos que estão na base das novas páginas que se abrem na vida do casal, ainda que ele seja mais uma ausência de si mesmo, principalmente pelo homem derrotado pelo ato de um envelhecimento atroz e acelerado pela enfermidade e desesperança.

Até que um dia tudo se altera. Lars D. sai de casa tentando debelar uma insónia e encontra alguém a dormir no seu carro. Esse alguém é Glória, uma jovem rapariga que explora os conturbados dias de juventude. Depois de a acolher em sua casa, Lars D., e ainda que perturbado, decide encaminhar Glória para outro destino mas esse ato vai colocar em causa o seu casamento, a sua vida.

Entretanto, a sua mulher decide ir no seu encalce, ainda que lide com a ausência do marido de forma esperada e natural. Como companhia escolhe o jovem vizinho Xavier, uma amizade recente mas consoladora que divide a sua vida entre os filmes clássicos e o amor pela Teologia. As pistas são poucas mas existe um documento que pode ser a chave. Lars D. deixou como “herança” um novo livro de título… “O Luto de Elias Gro”.

A excelência da escrita dorida e dolente de João Tordo marca, mais uma vez, um livro que cativa e explora os sentimentos mais escondidos de uma relação. Se, num momento, um casal se possa assumir como autêntico par de «palhacinhos de amor», na “página” seguinte, a medida da vida pode ser a solidão por convicção ou ato involuntário.

Os diálogos, ricos mas espartanos, são levianamente reveladores e não se medem por uma normal noção cronológica. O que interessa a João Tordo é dar-nos a conhecer a alma dos protagonistas, os seus medos e angústias, de forma quase intuitiva. E nesse sentido o próprio objeto livro tem um papel primordial. Escreve-nos Tordo: «“É possível que todos os livros sejam inúteis, se lemos para nos esquecermos de nós, para debelarmos a ferida de existir. Se formos previdentes, os livros também nunca nos magoam. Salvem-se de ler Kafka de madrugada, ou Virgínia Wolf se estiverem internados com uma pancreatite. As pessoas, sim, essas magoam-nos: são uma dádiva mas também agravam a nossa ferida, escarafuncham nela e fazem-na sangrar.»

Mas também há espaço para refletir a própria noção de estar entregue a si próprio pois «a solidão é estarmos sozinhos», mas também «uma presença fortíssima de nós próprios nas coisas que nos rodeiam».

Estas palavras mostram que a própria beleza pode ser violenta, que as pessoas podem ser parentes de «um sul desnorteado», de um fim, de uma morte, que «não é um lugar onde se chega, nem um destino». É sim «cada instante que vivemos, uma espécie de buraco negro aonde tudo vai parar» e, no fundo, uma inevitabilidade.

Não sendo um livro de respostas mas antes um compêndio reflexivo de questões existenciais, “O Paraíso Segundo Lars D.” é uma verdadeira pérola da literatura portuguesa contemporânea, uma radiografia crua do ato de estar sozinho, da ideia de um éden esquecido, de uma melancolia que cauteriza, de uma luta perdida antes do seu começo.

in Rua de Baixo

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