quinta-feira, 17 de março de 2016

“O Espião Inglês”
de Daniel Silva

Ecos do passado



Cada episódio da série Gabriel Allon é sinónimo de uma rocambolesca viagem pelo furtivo universo da espionagem, essencialmente graças à capacidade construtiva de Daniel Silva em transformar um “simples” livro numa espécie de devoção a uma causa, a uma ideia (literária) transformada num turbilhão de ação fundado nos princípios da dicotomia policial/thriller.

As narrativas criadas pelo autor norte-americano, de ascendência portuguesa, são alvo de uma criteriosa investigação e as semelhanças com a realidade não são meras coincidências. Os conflitos internacionais retratados, ainda que ficcionados, mantém o leitor num interessante limbo entre uma realidade geopolítica real e outra muito plausível.

Isso volta a acontecer no 15º tomo da série Gabriel Allon e “O Espião Inglês” (Harper Collins, 2016) é, provavelmente, o mais interessante e pertinente livro de Daniel Silva. Nele, mesmo para quem nunca leu nenhuma obra do autor, são contextualizadas situações e acontecimentos que ligam todos os personagens, sejam eles elementos integrantes do mundo dos vivos ou apenas memórias emocionais.

Em “O Espião Inglês” continuamos a sentir o interminável drama da morte de Dani, filho de Allon, a acutilante dor de Leah, ex-mulher de Gabriel, o premente nascimento dos gémeos de Gabriel e Chiara, os dramas de um Departamento que desespera pela ascensão de um novo líder (o próprio Allon), as complicadas relações com o passado coletivo e individual, a violência como forma de afirmação idealista, o terror como dialeto de um mundo divorciado da paz faz muito tempo que tem em personagens como Madeline Hart, a «rapariga inglesa», exemplos de vidas interrompidas do seu normal sentido.

E é nesse jogo de sombras, sublinhado a sangue, que se ergue este livro, uma autêntica epifania da vingança que se lê, ou devora, num ápice. E tudo começa com a estranha morte de uma ex-princesa britânica que faz com que os serviços secretos de Sua Majestade recorram aos préstimos de uma inédita dupla que percorre os acidentados terrenos de um mundo dividido entre as Caraíbas e o Médio Oriente, com paragens obrigatórias em Londres, Irlanda do Norte, Roma, Moscovo e Lisboa.

No centro das atenções de Gabriel Allon está o irlandês Eamon Quinn, perito no fabrico de explosivos, «capaz de criar uma arma capaz de gerar uma bola de fogo que se deslocava a trezentos metros por segundo», outrora aliado do terrorista palestiniano Tariq al-Hourani – o pior pesadelo de Allon e responsável pelo atentado que matou o seu filho Daniel -, e hoje sicário ao serviço do vil metal. Na sua essência, um ser esquivo, sombrio, apenas leal às suas convicções.

Mas, desta vez, o lendário espião israelita não está sozinho. Por companhia escolheu Christopher Keller, um ex-militar de elite convertido em assassino profissional a soldo, que assenta bem no papel de espião inglês e que, em tempos, foi contratado para matar o mais famoso espião israelita, ex-Mossad e reputado restaurador de arte.

Aquilo que parecia um “simples” ajuste de contas acaba por transformar-se numa das maiores caças ao homem ainda que não seja muito explícito quem é o caçador e a presa. Essa dúvida leva-nos aos mais obscuros recantos da história do conflito entre Inglaterra e o IRA, aos atentados realizados em nome da “liberdade” e a algumas das suas maiores vítimas.

A reboque de uma velocidade narrativa tão cara a Daniel Silva, “O Espião Inglês” leva o leitor para lugares tão distantes e diferentes como os bairros humildes dos subúrbios de West Belfast, os penhascos invernosos da Cornualha, tão caros a Allon, as ruas sempre perigosas de uma Moscovo desconfiada e fria e a pacatez de uma Lisboa guardada pela calmaria do Tejo.

Mais que nunca, Allon, na urgência de voltar a ser pai, enfrenta o seu negro passado, revivendo-o dolorosamente, e tem em Keller uma preciosa bengala armada para sair com vida de mais uma perigosa missão, uma aventura que volta a colocar a sua cabeça a prémio, ainda que agora protegida por um cabelo cada vez mais grisalho.

Mais que um thriller ou um policial, “O Espião Inglês” é um livro, de leitura compulsiva claro está, envolto de um profundo sentido lírico, de justiça, arrepiante, veloz e atormentado e com uma leitura do mundo de hoje, separado por diferentes religiões e políticas, e bem construído através de uma narrativa alicerçada nas relações crescentes e credíveis entre personagens.

E é, também, metaforicamente, uma tentativa de restauro de uma “pintura” marcada pelo tempo, uma derradeira viagem vincada pela presença de assassinos metódicos, agentes duplos ou triplos, contratados por governos sedentos por poder e sombria vingança.

In Rua de Baixo

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