quinta-feira, 17 de março de 2016

“O Impostor”
de Javier Cercas

O passado é uma dimensão do presente


A pergunta impõe-se: Quem é Enric Marco? A consciência dita que se questione, e reza o mantra criado pelo catalão Javier Cercas, se repita essa dúvida até se conseguir uma resposta esclarecedora, mesmo que a mesma esteja envolta de um logro, uma enorme mentira longe de qualquer enquadramento piedoso.

É sob essa premissa que evoluiu “O Impostor” (Assírio & Alvim, 2015), um relato, sob o desígnio de um thriller psicológico, que tem como figura maior, e única, o agora nonagenário barcelonês Enric Marco, símbolo máximo de um panorama crítico, criticável e criticado da história recente de uma Espanha que ainda resguarda, a memória (fresca) do que realmente foi o Holocausto.

A origem deste livro – que demorou cerca de sete anos a chegar até aos escaparates e foi mantido na gaveta enquanto Cercas apostava noutros projetos – remonta a 2005, ano que se deu a conhecer a mentira que foi a vida do, na altura, octogenário Marco, alguém que se dizia um sobrevivente aos campos de concentração nazis.

A maturação de “O Impostor” foi alvo de muitas reservas e nas primeiras páginas da obra Cercas não resiste em confessar: «Eu não queria escrever este livro. Não sabia exatamente porque não queria escrevê-lo, ou sabia que não queria reconhecê-lo ou não me atrevia a reconhecê-lo; ou não totalmente; O facto é que, ao longo de mais de sete anos, resisti a escrevê-lo».

A partir daí, dessa génese algo forçada, Javier Cercas interiorizou o assunto de forma obsessiva e quis contar a verdadeira história de Enric Marco a todos, para lá da ficção de quem quis passar-se por uma espécie de D. Quixote com uma história para contar e encantar o mundo, mas cujo passado estava envolto de um falacioso heroísmo bacoco que era devorado por uma triste realidade que teimava, perigosamente, ocultar.

O maior propósito do escritor catalão foi entender, e partilhar, o que terá feito Marco antes de escrever este pedaço literário de não-ficção. Assim, desprovido de um registo baseado numa vertente erudita, o autor de “Anatomia de um Instante” e “Soldados de Salamina” constrói a sua narrativa entre a alternância de fragmentos da vida real do “impostor” para, de facto, desmontar as suas deceções, verdades (muito cuidado ao cogitar esta palavra e conceito dentro deste contexto) e reflexões sobre a sua própria obra enquanto romancista.

Esta dicotomia entre realidade e imaginação, veracidades e falsidades, faz-nos desaguar num leito realista e, em determinados momentos, cru. Cercas destila o enquadramento de um passado que teima em trazer a palco o regime franquista, algumas fações opostas a este “ideal” e o pseudo-sobrevivente do campo de concentração de Flossenburg que, até ao início do século XXI, se mascarou de presidente da primeira associação espanhola que reunia os deportados para os campos de concentração nazis durante a Segunda Guerra, dava entrevistas e fazia palestras emotivas sobre as suas “façanhas” heroicas. Chegou mesmo a assumir um papel importante no sindicalismo espanhol no início do processo democrático do país, invocando o seu passado anti-Franco, até que o historiador madrileno Benito Bermejo revelou todo este logro em 2005.

Longe de ser uma biografia, “O impostor” não é também uma perspetiva exagerada de um personagem. Aquilo que se pretende é chegar ao fundo de toda a sua trapaça, nem que para isso Cercas tenha de escarafunchar dentro da sua literatura. Tendo essa bitola como ponto de partida, o catalão centra-se nas referências continuas a vários escritores sobre a “nobre” arte de mentir dentro do universo definido como “romance”. Mais vai mesmo mais longe, chegando a reconhecer que, eventualmente, ou não, todos nós temos um lado enganador e que o fazemos para que os outros nos amem e aceitem.

No entanto o caminho que Javier Cercas trilha para chegar a esse fim acaba por roçar a monotonia, e a repetição é, infelizmente, a figura mais recorrente. As frases, as ideias, repetem-se, e a causa da sua escrita cai no cúmulo do exagero, justificado por um ataque cerrado a esquerda e direita, direções políticas e democráticas que acabam por implodir.

No cerne da questão poderá estar no fascínio, aqui sinónimo de obsessão, que Cercas confessa sentir por Marco depois de se saber da sua perversa e mentirosa história. E é esse deliberando “enamoramento” que serve de base a um livro que se situa, poeticamente, num limbo entre o racional e o emocional, entre a objetividade e a literatura.

In Rua de Baixo

“O Espião Inglês”
de Daniel Silva

Ecos do passado



Cada episódio da série Gabriel Allon é sinónimo de uma rocambolesca viagem pelo furtivo universo da espionagem, essencialmente graças à capacidade construtiva de Daniel Silva em transformar um “simples” livro numa espécie de devoção a uma causa, a uma ideia (literária) transformada num turbilhão de ação fundado nos princípios da dicotomia policial/thriller.

As narrativas criadas pelo autor norte-americano, de ascendência portuguesa, são alvo de uma criteriosa investigação e as semelhanças com a realidade não são meras coincidências. Os conflitos internacionais retratados, ainda que ficcionados, mantém o leitor num interessante limbo entre uma realidade geopolítica real e outra muito plausível.

Isso volta a acontecer no 15º tomo da série Gabriel Allon e “O Espião Inglês” (Harper Collins, 2016) é, provavelmente, o mais interessante e pertinente livro de Daniel Silva. Nele, mesmo para quem nunca leu nenhuma obra do autor, são contextualizadas situações e acontecimentos que ligam todos os personagens, sejam eles elementos integrantes do mundo dos vivos ou apenas memórias emocionais.

Em “O Espião Inglês” continuamos a sentir o interminável drama da morte de Dani, filho de Allon, a acutilante dor de Leah, ex-mulher de Gabriel, o premente nascimento dos gémeos de Gabriel e Chiara, os dramas de um Departamento que desespera pela ascensão de um novo líder (o próprio Allon), as complicadas relações com o passado coletivo e individual, a violência como forma de afirmação idealista, o terror como dialeto de um mundo divorciado da paz faz muito tempo que tem em personagens como Madeline Hart, a «rapariga inglesa», exemplos de vidas interrompidas do seu normal sentido.

E é nesse jogo de sombras, sublinhado a sangue, que se ergue este livro, uma autêntica epifania da vingança que se lê, ou devora, num ápice. E tudo começa com a estranha morte de uma ex-princesa britânica que faz com que os serviços secretos de Sua Majestade recorram aos préstimos de uma inédita dupla que percorre os acidentados terrenos de um mundo dividido entre as Caraíbas e o Médio Oriente, com paragens obrigatórias em Londres, Irlanda do Norte, Roma, Moscovo e Lisboa.

No centro das atenções de Gabriel Allon está o irlandês Eamon Quinn, perito no fabrico de explosivos, «capaz de criar uma arma capaz de gerar uma bola de fogo que se deslocava a trezentos metros por segundo», outrora aliado do terrorista palestiniano Tariq al-Hourani – o pior pesadelo de Allon e responsável pelo atentado que matou o seu filho Daniel -, e hoje sicário ao serviço do vil metal. Na sua essência, um ser esquivo, sombrio, apenas leal às suas convicções.

Mas, desta vez, o lendário espião israelita não está sozinho. Por companhia escolheu Christopher Keller, um ex-militar de elite convertido em assassino profissional a soldo, que assenta bem no papel de espião inglês e que, em tempos, foi contratado para matar o mais famoso espião israelita, ex-Mossad e reputado restaurador de arte.

Aquilo que parecia um “simples” ajuste de contas acaba por transformar-se numa das maiores caças ao homem ainda que não seja muito explícito quem é o caçador e a presa. Essa dúvida leva-nos aos mais obscuros recantos da história do conflito entre Inglaterra e o IRA, aos atentados realizados em nome da “liberdade” e a algumas das suas maiores vítimas.

A reboque de uma velocidade narrativa tão cara a Daniel Silva, “O Espião Inglês” leva o leitor para lugares tão distantes e diferentes como os bairros humildes dos subúrbios de West Belfast, os penhascos invernosos da Cornualha, tão caros a Allon, as ruas sempre perigosas de uma Moscovo desconfiada e fria e a pacatez de uma Lisboa guardada pela calmaria do Tejo.

Mais que nunca, Allon, na urgência de voltar a ser pai, enfrenta o seu negro passado, revivendo-o dolorosamente, e tem em Keller uma preciosa bengala armada para sair com vida de mais uma perigosa missão, uma aventura que volta a colocar a sua cabeça a prémio, ainda que agora protegida por um cabelo cada vez mais grisalho.

Mais que um thriller ou um policial, “O Espião Inglês” é um livro, de leitura compulsiva claro está, envolto de um profundo sentido lírico, de justiça, arrepiante, veloz e atormentado e com uma leitura do mundo de hoje, separado por diferentes religiões e políticas, e bem construído através de uma narrativa alicerçada nas relações crescentes e credíveis entre personagens.

E é, também, metaforicamente, uma tentativa de restauro de uma “pintura” marcada pelo tempo, uma derradeira viagem vincada pela presença de assassinos metódicos, agentes duplos ou triplos, contratados por governos sedentos por poder e sombria vingança.

In Rua de Baixo

quarta-feira, 9 de março de 2016

Tindersticks
“The Waiting Room”


Entre 1993 e 2003 ou, por outras palavras, entre o disco homónimo de estreia dos Tindersticks e “Waiting for the Moon” (City Slang, 2016), a banda natural de Notthingham habituou os fãs ao lançamento de álbuns de originais a cada dois anos. Essa cadência coincidiu com uma das fases mais criativas do colectivo, liderado pela voz quente e aconchegante de Stuart Staples. Depois disso, nomeadamente em 2005 – quando o vocalista encetou uma breve aventura a solo -, pairou no ar a ameaça do final da banda. Apesar disso, timidamente, os Tindersticks voltariam ao activo ainda que com algumas mexidas no seio da banda.

Na ressaca desse período de incerteza saíram discos como “The Hungry Saw” ou “Falling Down a Mountain”, este editado entre a mítica 4AD e a canadiana Constellation Records e “The Something Rain”, lançado em 2012.

E foi preciso chegarmos a 2016 para termos mais notícias da banda, com um resultado muito interessante. “The Waiting Room” faz-nos acreditar que os Tindersticks continuam com a capacidade de construir canções que reflectem sussurradas perspetivas de uma vida atormentada por uma das suas maiores ameaças: o quotidiano.

Requintadas e nascidas com os habituais (e sempre bem-vindos) tiques do universo de Staples e comparsas, as 11 canções de “The Waiting Room” mergulham-nos em cenários dignos de um interessante e rebuscado film-noir, procurando sentimentos como a redenção ou a esperança e, a espaços, agindo como faróis num porto de abrigo junto a um mar revolto.

Esteticamente (um dos pontos mais fortes da banda) este disco reflecte, também, um esforço para criar algo de especial. Para isso recorreram a alguns realizadores como Claire Denis, um colaborador habitual, e montaram uma série de pequenos-filmes (disponíveis da versão LP/DVD) que se assumem como um importante complemento à própria música, resultando em momentos de meditação visual.

Musicalmente, a produção deste disco transmite a sensação de que o som foi arrancado de uma certa (e apática) escuridão para um túnel de maior luz e clarividência. As cordas são, agora, menos opressivas e, por exemplo, as guitarras emergem de uma névoa de reverb. A sua presença é alvo de maior tolerância apesar de conviverem, tranquilamente, com outros instrumentos.

Dessa comunhão resultam episódios que vagueiam entre uma (doce) melancolia e ambientes mais “musculados”. O instrumental “Follow Me”, primeira faixa do disco, por exemplo, é uma avassaladora e terna experiência que tem por fio condutor uma harmonia hipnótica que nos empurra para um ambiente próximo de western spaghetti. Já “Were We Once Lovers?”, repleta de verve, assalta os nossos sentidos para uma fantástica noção de urbanidade com, principalmente, piano e baixo a acompanharem o lamento de Staples.

A curtinha “Planting Holes” é um dos momentos mais bonitos do disco e está cheia de um acutilante apelo emotivo em versão “banda sonora”, algo que os Tindersticks fazem como poucos. O piano tem um papel decisivo enquanto, à sua volta, pequenos e singelos estilhaços sonoros sublinham uma maravilhosa noção global. Mais pop, “Hey Lucinda”, cantada entre Staples e a saudosa Lhasa de Sela, é um profundo elogio ao género baladeiro e algo “decadente”, assim como “We Are Dreamers”, momento partilhado com Jehnny Beth das Savages, que se assume como um apelo ao perverso acto de sonhar.

Ainda que tenhamos que reconhecer que os Tindersticks não são os mesmos dos primeiros tempos, continua a existir muita qualidade nas suas canções, e nem o género mais spoken word foi esquecido – “How He Entered” é exemplo disso mesmo, assim como da habilidade em fazer poemas lindíssimos: “With his hair combed he stood in the doorway / like a lost dog holding his missing poster / with chips in his pocket / just waiting for his chance to get into the game.”

The Waiting Room” mostra que os Tindersticks continuam a fazer bons discos, colecções de canções repletas de intrincados poemas e um saudável apego (muitas vezes negro e sofrido) sonoro. A grandiosidade permanece imaculada, e o resultado final vai agradar a fãs de longa data bem como a novos e curiosos ouvintes. A culpa é do sentimento de “eterno retorno” com o qual se constroem as músicas deste trabalho, uma espécie de regresso a um lugar onde já se presenciou a felicidade e que, sem medo, voltamos invariavelmente a abraçar.

In deusmelivro

segunda-feira, 7 de março de 2016

“O Paraíso segundo Lars D.”
de João Tordo

A Solidão é um Porto de Abrigo 


Depois de ler “O Luto de Elias Gro”, ficaram na memória frases, ideias avulso ou dentro de um especial contexto. A vida e a morte eram tema frequente e o peso do tempo passado, pesada pedra que constrói a vida de um homem presente e em direção ao futuro, deixam feridas que nunca saram.

Naquela ilha remota, cenário desolador desse livro, a dor era denunciada pela natureza individual ou coletiva, por uma nuvem ou vento que teimava em assombrar o clima, já de si invernoso e intrínseco ao Homem que carrega(va) a estação fria da existência.

Delicioso primeiro tomo de uma anunciada e sombria trilogia, “O Luto de Elias Gro” funciona como a antecâmara para “O Paraíso Segundo Lars D.” (Companhia das Letras, 2015) um livro que gira em torno de um quarteto de personagens que reúnem em si uma espécie de outono, um perfil que mistura esperança e ilusão, verdades e mentiras.

Ainda que seja Lars D., um escritor sexagenário cuja vida balança ao sabor das agruras de um cancro, nunca escondendo o desejo ou o dilema da sua supressão, uma figura omnipresente de toda a narrativa, é a voz de sua mulher que nos relata e retrata os episódios que constituem esta obra.

Ao longo das duas centenas de páginas ficamos a saber mais sobre a vida desse casal, um dueto, de início improvável e envolto de um determinismo cliché, refém de ecos do passado, de memórias que navegam entre bons e maus presságios, entre comédias e tragédias, através das quais se «reconstrói uma cartografia emocional do seu casamento, que é afinal um mapa de solidão e afetos».

São esses sentimentos que estão na base das novas páginas que se abrem na vida do casal, ainda que ele seja mais uma ausência de si mesmo, principalmente pelo homem derrotado pelo ato de um envelhecimento atroz e acelerado pela enfermidade e desesperança.

Até que um dia tudo se altera. Lars D. sai de casa tentando debelar uma insónia e encontra alguém a dormir no seu carro. Esse alguém é Glória, uma jovem rapariga que explora os conturbados dias de juventude. Depois de a acolher em sua casa, Lars D., e ainda que perturbado, decide encaminhar Glória para outro destino mas esse ato vai colocar em causa o seu casamento, a sua vida.

Entretanto, a sua mulher decide ir no seu encalce, ainda que lide com a ausência do marido de forma esperada e natural. Como companhia escolhe o jovem vizinho Xavier, uma amizade recente mas consoladora que divide a sua vida entre os filmes clássicos e o amor pela Teologia. As pistas são poucas mas existe um documento que pode ser a chave. Lars D. deixou como “herança” um novo livro de título… “O Luto de Elias Gro”.

A excelência da escrita dorida e dolente de João Tordo marca, mais uma vez, um livro que cativa e explora os sentimentos mais escondidos de uma relação. Se, num momento, um casal se possa assumir como autêntico par de «palhacinhos de amor», na “página” seguinte, a medida da vida pode ser a solidão por convicção ou ato involuntário.

Os diálogos, ricos mas espartanos, são levianamente reveladores e não se medem por uma normal noção cronológica. O que interessa a João Tordo é dar-nos a conhecer a alma dos protagonistas, os seus medos e angústias, de forma quase intuitiva. E nesse sentido o próprio objeto livro tem um papel primordial. Escreve-nos Tordo: «“É possível que todos os livros sejam inúteis, se lemos para nos esquecermos de nós, para debelarmos a ferida de existir. Se formos previdentes, os livros também nunca nos magoam. Salvem-se de ler Kafka de madrugada, ou Virgínia Wolf se estiverem internados com uma pancreatite. As pessoas, sim, essas magoam-nos: são uma dádiva mas também agravam a nossa ferida, escarafuncham nela e fazem-na sangrar.»

Mas também há espaço para refletir a própria noção de estar entregue a si próprio pois «a solidão é estarmos sozinhos», mas também «uma presença fortíssima de nós próprios nas coisas que nos rodeiam».

Estas palavras mostram que a própria beleza pode ser violenta, que as pessoas podem ser parentes de «um sul desnorteado», de um fim, de uma morte, que «não é um lugar onde se chega, nem um destino». É sim «cada instante que vivemos, uma espécie de buraco negro aonde tudo vai parar» e, no fundo, uma inevitabilidade.

Não sendo um livro de respostas mas antes um compêndio reflexivo de questões existenciais, “O Paraíso Segundo Lars D.” é uma verdadeira pérola da literatura portuguesa contemporânea, uma radiografia crua do ato de estar sozinho, da ideia de um éden esquecido, de uma melancolia que cauteriza, de uma luta perdida antes do seu começo.

in Rua de Baixo

domingo, 6 de março de 2016

“Histórias de Aventureiros e Patifes”
de George R.R. Martin e Gardner Dozois


Seja dentro do universo do cinema, teatro ou literatura, a complexidade com que os personagens são pensados, caracterizados e posteriormente apresentados e vividos, é uma das mais significativas mais-valias para se conseguir um bom resultado, seja ele um filme, uma peça ou uma boa estória em formato livro.

E é, acima de tudo, pelos personagens que nos apaixonamos, que nos rendemos a essas narrativas, principalmente aquelas cuja construção nos identifique com algo ou, no limite, sirva de catarse. Nesse sentido, uma considerável parte desses personagens são os patifes, os irrascíveis, os vilões.

Que atire a primeira pedra quem não se deixou levar pela astúcia de Moriaty, de Arthur Conan Doyle, a perversidade desastrada de Capitão Gancho, de J. M. Barrie, o caráccter abjecto de Bill Sikes, de Charles Dickens, a maldade pandémica de Sauron, de J. R. R. Tolkien, a mortífera sagacidade de Hannibal Lecter, de Thomas Harris, o instinto assassino de Mr. Kurtz, de Joseph Conrad, ou a icónica maldade de Claudius, de William Shakespeare.

Foi com base nesse fascínio pelo lado “negro” das personagens que nasceu “Histórias de Aventureiros e Patifes” (Saída de Emergência, 2015), de George R.R. Martin e Gardner Dozois, uma colecção de 10 contos – a versão original apresenta 21 – que atribui à vilanagem o papel principal e deixa encantado quem segue ladrões e verdadeiros piratas sem escrúpulos, cuja génese está relacionada com o fascinante mundo do Fantástico, território preferido dos coordenadores desta compilação. O resultado final são duas mãos cheias de contos que conseguem uma fantástica envolvência, deixando o leitor entregue a uma estória que, apesar de curta, o deixa a salivar por mais.

Entre os autores selecionados, a dupla Martin/Dozois entregou as páginas a gente como Gillian Flynn (autora de “Em Parte Incerta”), Neil Gaiman (autor de “Sandman”), Patrick Rothfuss (criador de “O Nome do Vento”), Scott Lynch (autor de “As Mentiras de Locke Lamora”) ou Connie Willis (ideóloga de “O Dia do Juízo Final”).

Há ainda tempo para uma breve introdução à temática do livro por parte de J. R. R. Martin, do qual temos ainda a honra de ler “O Príncipe de Westeros ou O Irmão do Rei”, conto que encerra a colecção e nos transporta para o mundo épico de “A Guerra dos Tronos”, revelando alguns detalhes das gerações do célebre clã Targaryen.

Existem, sem dúvida, muitos pontos de interesse em “Histórias de Aventureiros e Patifes” e, além dos já referidos textos do autor da saga “As Crónicas de Gelo e Fogo”, destacam-se os trabalhos de Gaiman ou Willis. Se “Como o Marquês Recuperou o seu Casaco” faz eco ao terrível Marquês de Carabas de “Neverwhere – Na Terra do Nada”, já “Em Exibição”, de Connie Willis, traz-nos um cenário natalício muito especial.

Mas as (boas) surpresas não ficam por aqui. “A Caravana para Nenhures”, de Phyllis Eisenstein, traça uma tangente à noção de viagem e urbanidade, “Galho Vergado”, de Joe R. Lansdale, apresenta-nos um surpreendente sacana heróico de – espante-se! – bom coração e, quanto a “A Árvore Reluzente”, de Patrick Rothfuss, recupera o atípico Bast da série “A Crónica de Regicida”.

In deusmelivro