terça-feira, 30 de junho de 2015

“Uma Morte Impossível”
de Ian Rankin

Igual mas diferente...em bom


O cenário é Edimburgo, a Escócia, as suas políticas, o confronto idealista entre separatistas e unionistas. No centro da trama está Fox, Malcom, inspetor do Departamento de Assuntos Internos, um polícia que espia, e expia, colegas de profissão.

Nesta que é a segunda aventura de Fox, depois de “Uma Questão de Consciência”, acentuam-se as diferenças entre Malcom Fox e John Rebus, mas a qualidade da escrita de Ian Rankin continua inabalável. É certo que Fox não tem a melodia, a música, o ritmo de Rebus, mas o inspetor divorciado, quarentão e abraços com a doença do pai e amargura da irmã, tem um ritmo próprio que para o fã de Rankin, de início, se estranha mas depois se entranha, naturalmente.

Definitivamente, Malcom Fox, enquanto personagem, resulta. Construído com uma complexidade assinalável, Fox está envolto de um (saudável) negrume e tende a canalizar a sua energia para o seu trabalho. É assumidamente um espírito da “velha-guarda”, um solitário que se recusa a aceitar normal, por exemplo, tirar partido do amor de uma senhora enquanto esta está sob o delírio do álcool.

Em “Uma Morte Impossível” (Porto Editora, 2015), as hostilidades começam num ritmo lento, dolente. Fox é enviado para Kirkcaldy, a maior cidade da área de Fife, para investigar um caso de corrupção policial. No caso, o detetive Paul Carter, membro do Departamento de Investigação Criminal, é considerado culpado de conduta imprópria e Fox, e a sua equipa composta pelo sargento Tony Kaye e o agente Joe Naysmith, entram em jogo para apurar se Carter contou com a cobertura da situação por parte de alguns colegas. O clima é de animosidade entre polícias.

Fox quer saber tudo sobre o caso e descobre que Paul foi alvo de denúncia de Alan Carter, seu tio e ex-polícia. Quando chega à fala com Alan e depois com Teresa Collins, vítima de Paul, as peças tendem a não encaixar.

Num turbilhão de acontecimentos, Paul Carter aguarda, entretanto, julgamento em liberdade, Teresa Collins atenta contra a própria vida e Alan aparece morto em casa. A arma do crime jaz ao seu lado.

A ideia de suicídio parece consensual mas o facto de a arma não estar registada leva Fox a investigar mais fundo e dá consigo envolvido numa trama que extravasa as suas funções e responsabilidades iniciais. O que terá a morte de Alan Carter a ver com o terrorismo separatista praticado na Escócia nos anos 1980 por grupos como o Comando da Colheita Negra e o nunca bem explicado acidente de Francis Vernal, uma das principais caras da política escocesa dessa época?

E é este o mundo que Rankin nos habituou. Uma narrativa densa, complexa, com diálogos rápidos e certeiros, crimes que desafiam a lógica num mundo estranho que desafia passados e presente. Este é o ambiente perfeito para Fox, um polícia solitário que passa por um período complicado mas real.

Enquanto as páginas passam e a morte de Alan Carter adensa o mistério adjacente, Fox reafirma a sua luta pessoal e profissional, à prova de qualquer bala familiar, afetiva ou política, e nem mesmo a desconfiança dos seus colegas investigados, que menosprezam as suas qualidades de «polícia inferior», abalam o seu edifício emocional.

É chegado o momento para Fox provar que é capaz, a si mesmo bem como a colegas e família, de gerir a sua vida. Para isso, Rankin constrói, de maneira irrepreensível, uma boa história que funde ambientes tensos e compulsivos cuja leitura é muito gratificante, explorando da melhor maneira possível os limites da memória e os perigos do idealismo histórico.

In Rua de Baixo

segunda-feira, 29 de junho de 2015

“O Azul dos Teus Olhos”
de Mary Higgings Clark


Aos 87 anos, a norte-americana Mary Higgins Clark dispensa grandes apresentações. Com dezenas de títulos publicados (muitos deles com edição portuguesa) e 150 milhões de livros vendidos em todo o mundo, a antiga secretária e hospedeira ganhou fama internacional por culpa de uma escrita onde o suspense é imagem de marca.

Para muito a mais verdadeira herdeira do legado de Agatha Christie, Clark ganhou a alcunha de Rainha do Suspense, gozando de uma reputação única nos meandros da chamada literatura policial. Como que a provar isso mesmo chega-nos agora “O Azul dos Teus Olhos” (Bertrand Editora, 2015), um romance construído com base em dois enredos que se complementam, tornando esta obra numa espécie de “dois-em-um”.

Há cerca de cinco anos, o Dr. Greg Moran – marido de Laurie – é morto por um psicopata que perseguia a sua família. A única testemunha ocular do assassino foi Timmy, filho do casal, na altura com apenas três anos. Na retina de Timmy ficaram os diabólicos e penetrantes olhos azuis do assassino, que se tornaram uma presença habitual dos seus constantes pesadelos.

Mas Laurie é perseguida por mais do que a perda do marido e o tormento de Timmy. Quando a criança conseguiu fugir do cenário do crime, o assassino, escondido por um lenço que lhe cobria o rosto, gritou a pior das ameaças: «Diz à tua mãe que a seguir é ela. E depois, és tu».

No presente, Laurie enfrenta novamente um homicídio, ainda que desta vez ficcionado e no papel de produtora de um programa televisivo que versa sobre crimes reais. A temporada abre com o caso de Betsy Powell, um mistério que ainda está por resolver passadas duas décadas. Nessa altura, a socialite Betsy foi encontrada morta, asfixiada na sua cama. O corpo foi descoberto pela sua filha e mais três amigas que chegavam da sua festa de finalistas. O caso assolou os órgãos de comunicação social por todo o país.

Agora, com a colaboração dos convidados, Laurie “reabre” o caso, mas quando as gravações começam torna-se claro que cada um dos presentes tem segredos por revelar. O passado não é um cenário pacífico e resolvido para aquelas mentes que sentem ainda, de perto, um par de olhos azuis que as observam.

Somos assim transportados para um universo muito ao género da já referida Agatha Christie, sendo que na narrativa de “O Azul dos Teus Olhos” Clark recorre mesmo à referência do clássico “Crime no Expresso do Oriente”. Tal como no complexo mundo de Poirot, também aqui todos os suspeitos são criaturas desprezíveis e qualquer um poderá ser o assassino.

E, tal como Christie, Mary Higging Clark exibe uma visão sombria da humanidade. Enquanto devora as páginas deste livro, o leitor é confrontado com roubos, extorsão, vários adultérios, incestos e crueldades várias, entre um “elenco” onde todos se odeiam…de morte.

A narrativa flui com naturalidade, a escrita é simples, directa e viciante, as personagens são interessantes e o suspense está sempre, mas sempre, presente. Ainda assim, o final pauta-se por alguma previsibilidade e leva o leitor a pensar em mais alternativas para o epílogo.

In deusmelivro

quarta-feira, 24 de junho de 2015

“Até para o Ano em Jerusalém”
de Maria da Conceição Caleiro


Tendo como territórios de eleição o Brasil e os Açores, a narrativa de “Até para o Ano em Jerusalém” (Companhia das Ilhas, 2015), de Maria da Conceição Caleiro, resulta de uma visão muito própria do conceito de vitimização, de uma sensação de impotência, independentemente do seu ângulo ou perspectiva.

Mas é, também, uma exploração das fronteiras (e dos limites) do amor, da natureza desse acto, e dos extremos que resultam da incondicionalidade e, no caso, do espectro da sobrevivência que se deixa assolar por doses ambivalentes de cobardia, medo e abandono, algo que vai ao “encontro” do que a autora concebeu com a sua obra anterior, “O Cão das Ilhas”, título que lhe valeu, em 2009, o prémio PEN Clube Português para Primeira Obra publicada.

Em “Até para o Ano em Jerusalém”, a autora versa também sobre o contágio, metafórico ou não, do sangue, enquanto veículo de propagação “da” doença e do ódio antissemita, mas também de um romance cuja matemática se transfigura para algo penoso, doloroso e que tem como palco uma Jerusalém mítica, entre o real e o onírico.

No olho deste furacão lírico estão duas pessoas, um homem e uma mulher, que trazem atreladas a si uma série de questões de resolução complicada ou (im)possível. Vicente e Maria Luís conhecem-se, por um acaso, em casa de uma amiga – a narradora desta estória. Ele é especialista em História Contemporânea, é professor, está temporariamente separado e ultima a sua obra literária. Além disso, está de partida para terras de Vera Cruz, para leccionar. Ela, artista plástica, faz esculturas e adoptou o nome artístico Kowalevsky, depois de uma ocasional descoberta ao vasculhar missivas esquecidas do passado familiar. Do encontro, brota uma paixão que não acaba bem. Maria Luís é seropositiva.

Enquanto está no Brasil, Vicente conhece alguém, um colega, David, de apelido – verdadeiramente – Kowalevsky, nome de origem judaica, descendente de imigrantes refugiados do Holocausto. A coincidência, ou talvez não, leva-o a pesquisar a origem do apelido, o seu destino. A investigação, qual vertigem, leva Vicente à orla de Iossef, um refugiado polaco que zarpou de Danzing, actual Gdansk, com destino a Inglaterra mas que fez “escala” nos Açores antes de assentar amarras na América do Sul.

Mais do que letras, ideias, Maria da Conceição Caleiro inspira-se na arte de Maria Luís e cria, também ela, esculturas, imagens em forma de palavras, frases que resultam, por exemplo, no relato da destruição da Grande Sinagoga de Danzig – cidade que está no epicentro do início da Segunda Guerra Mundial -, e da venda do seu património que tinha, por destino, patrocinar a fuga ao mais cruel dos destinos.

Mestre em Literatura e Cultura Portuguesas, com experiência na área do ensino e colaboradora das revistas Ler e Egoísta e do jornal Público, Maria da Conceição Caleiro dá mais um passo no amadurecimento da sua condição de escritora. “Até para o Ano em Jerusalém” é uma obra pertinente, honesta e, acima de tudo, convincente, cujo início remete a uma Polónia reclusa de 1939 terminando no “eixo” Portugal/Brasil.

Nas mãos temos um livro que deve ser lido, absorvido, como uma reflexão sobre a memória individual, civilizacional e cultural, que se alicerça em fragmentos da História, do Holocausto e da interminável diáspora do povo judeu.

In deusmelivro

terça-feira, 23 de junho de 2015

Faith No More - “Sol Invictus”

Eles importam, e muito!


Formados no início da década de 1980, os californianos Faith no More “criaram” um som que fundia rock, um funk musculado e algumas doses de ambiente metaleiro. Aliado a esse padrão sonoro chegaria, mais tarde, a voz especial e elástica de Mike Patton, que, dentro do universo rock das últimas décadas, apenas encontrou paralelo em termos de versatilidade em nomes como, por exemplo, Jeff Buckley ou Chris Cornell.

Ao quarto álbum, em 1992, os Faith no More exploraram a veia experimental ao limite e com “Angel Dust”, um dos melhores e mais complexos discos dos anos 1990, deram a conhecer hinos incontornáveis como “A Small Victory”, “Midlife Crisis”, “Be Agressive” ou “Everything Ruined”.

Numa altura em que a Internet era apenas uma miragem, os Faith No More ousaram vender mais de três milhões de discos no mundo inteiro, para mais quando o fenómeno Nirvana estava no auge. E, já que falamos na cena Grunge, atribuir apenas às bandas de Seattle a responsabilidade da emergência do movimento designado por metal alternativo é grande redundância, pois na génese do género estiveram grupos como os Therapy, Primus e, claro está, os Faith No More, principalmente pelos riffs poderosos de Jim Martin, pela batida sincopada de Mike Bordin e as acrobacias vocais de Patton.

Depois disso, com algumas convulsões no seio da banda, com a saída de Martin a ser um dos maior rombos no casco do navio, os Faith no More editariam “King For a Day...Fool for a Liftime” e, mais tarde, “Album of the Year” - bons trabalhos mas longe de “Angel Dust”. Para adensar a crise, Mike Patton apostaria em direções mais a solo.

Até que chegamos a “Sol Invictus”, inesperado novo disco dos Faith No More, que opta por seguir os trilhos deixados em 1997 – talvez com a exceção de “Motherfucker”, que remete claramente para os primórdios da banda – com um devido upgrade criativo, possibilitando, 18 anos depois, encher os nossos ouvidos com um punhado de grandes e refrescantes temas.

Sob a batuta do velho companheiro de luta Matt Walace na produção, “Sol Invictus” revela uns Faith no More conscientes do seu potencial e os primeiros dois singles, “Motherfucker” e “Superhero”, ilustram as muitas faces da banda. Se no primeiro caso estamos perante um clima tenso, opressivo e, a espaços, operático, “Superhero” tem um perfil mais direto e rock, onde os riffs convivem na plenitude com a presença de um piano quase fantasma.

A versatilidade dos Faith No More é uma constante no álbum e “Matador”, por exemplo, é uma elaborada produção com mais de seis minutos em crescendo, cujos primeiros instantes remetem para ambientes baladeiros, principalmente por culpa de um piano planante, mas que evoluem em direções mais pesadas com Patton a cantar "We will rise, from the killing floor", já com o baixo e a bateria a tomarem conta do ambiente.

Em momentos como “Black Friday”, que lembra amiúde o crossover dos suíços The Young Gods dos tempos de “Enjoyé”, Mike Patton faz gala em mostrar como a sua voz continua indomável, livre de géneros e preconceitos, algo também comprovável em episódios mais escuros como “Cone of Shame” e “Separation Anxiety”, duas das composições mais emblemáticas e poderosas de “Sol Invictus”.

Já “Sunny Side Up” mostra o lado mais cool da banda californiana, enquanto o potente “Rise and Fall” faz recuar ao já referido “Angel Dust”. Não descuraria do seu alinhamento ou de algum “lado B” de uma canção do disco de 1992.

Analisado na globalidade, “Sol Invictus” é um disco sólido, orelhudo e que, felizmente, contraria quem duvidava da qualidade dos temas apresentados quase duas décadas depois de “Album of the Year”, um trabalho que não entusiasmou muito os fãs da banda. Ao contrário dos vinhos que precisam de ar para respirar, ganhar sabor, “Sol Invictus” é um puro deleite ao primeiro gole e deixa um travo que mistura saudade de outros tempos e umas pitadas de um presente sonoramente aveludado, e que inebria quem o prova.

Alinhamento:

01.Sol Invictus
02.Superhero
03.Sunny Side Up
04.Separation Anxiety
05.Cone of Shame
06.Rise of the Fall
07.Black Friday
08.Motherfucker
09.Matador
10.From the Dead

Classificação do Palco: 8,5/10

in Palco Principal

quarta-feira, 17 de junho de 2015

“Se me Restasse Apenas uma Hora Para Viver”
de Roger-Pol Droit

Os livros não se medem pelo número de páginas


Homem que reflete como poucos a estoica aventura daquilo que se ousou chamar de pensamento contemporâneo, o francês Roger-Pol Droit divide o seu tempo entre a investigação filosófica, o jornalismo (é colunista no Le Monde e em outras publicações francesas) e a escrita de livros, atividade que encontra eco por terras portuguesas através de títulos como “Voltar a Ler os Clássicos”, “A Companhia dos Filósofos”, “O Que é o Ocidente” e agora este “Se me Restasse Apenas uma Hora Para Viver” (Editorial Planeta, 2015).

Tratasse de um livro diferente sendo, como o nome indica, um permanente estado de urgência com “apenas” 72 páginas onde o autor pergunta-nos o que fazer se apenas nos restasse 60 minutos de vida, 3600 segundos até ao último suspiro.

O que faríamos nesse lapso temporal? O que pensar? Recordar o passado ou investir no presente fátuo de forma intensa e inexorável? Estas são algumas interrogações propostas pelo filósofo francês que avança com alguns pontos de vista, perspetivas essas que são um desafio ao pensamento de eventuais e arriscadas respostas em nome próprio.

Através de uma narrativa na primeira pessoa, Droit lança pensamentos frenéticos, de alguém que “sente” a vida terminar mas que tem o discernimento lírico de criar uma obra que promove o sabor da vida e arrisca viver na plenitude cada segundo. Nas suas palavras, não se aprende a morrer, pois essa é uma dimensão irrepetível, mas podemos aprender a viver, a aproveitar cada momento, a deixar uma marca.

“Se me Restasse Apenas uma Hora Para Viver” conduz-nos para a essência de estar a viver num limbo dramático mas consciente, num cenário que permite traçar planos onde a verdade é o maior trunfo com Droit a conseguir, com destreza, escapar a lugares comuns, clichés e valores garantidos.

Mas também há lugar à crítica, à inércia de pensamento, principalmente daqueles que não planeiam fazer um debate de si mesmos, através de um empenho em forma de discussão filosófica, tranquila e sempre com profunda fundamentação quotidiana e na fronteira entre a racionalidade e um sentido marginal.

In Rua de Baixo

“O Livro dos Camaleões”
de José Eduardo Agualusa


Quem já teve o prazer de ler alguma obra de José Eduardo Agualusa sabe que se irá vaguear entre um realismo ilusório (qualquer tipo de paradoxo fica desde já vetado) e uma poesia efabulatória, sem complexos, que desafia os cânones da mais convencional literatura.

Autor de títulos como “Lisboa Africana”, “Estação das Chuvas”, “O Vendedor de Passados” ou “Educação Sentimental dos Pássaros”, Agualusa faz-nos agora chegar “O Livro dos Camaleões” (Quetzal, 2015), uma compilação de contos inéditos e já conhecidos, dispersos em publicações várias entre Portugal e o Brasil e que, segundo o autor, fazia todo o sentido partilharem o mesmo espaço físico.

Ainda que a sua natureza seja diversa, “O Livro dos Camaleões” encontra o fio condutor numa característica comum associada aos seus personagens que são figuras de personalidade esguia, em busca de uma identidade própria. No fundo, camaleões em si mesmos, principalmente quando Agualusa “brinca” com algumas figuras por si criadas que remetem para pessoas de carne e osso, ávidas representantes da sociedade angolana e cujos pensamentos podem dar pérolas como esta: «À escala da eternidade, toda a improbabilidade é mais do que certa. Tudo o que pode acontecer, acontecerá.»

E, de facto, não há fronteiras para a imaginação de Agualusa, que tece contos de temática variada: como a descrição de uma passagem de ano que funde esperança, desejos e um certo conformismo; ou um construtor de castelos preso no espaço e no tempo, refugiado na sombra de uma mangueira cujo piscar de olhos é sinónimo de mudanças, de companhias que desafiam o existir; um amor escarlate, que representa o outro lado da vida sobre a forma de margem certa; a fragilidade da nudez de alguém que recusa aceitar a sua genealogia perante uma tempestade, cuja intempérie atinge de fora para dentro; a sombra de um homem desmemoriado pela guerra, que encontra o norte num espectáculo de marionetas; um vendedor em busca de África; um personagem de um romance com vida própria, que se refugiava no anonimato patrocinado por um chapéu misterioso; deuses comparados a baratas e epifanias que fazem virgens perderem a cabeça; zebras que podem, ou não, gostar de melancia; um democrata déspota que percorre a história recente de uma Angola pré e pós independência e se refugia no sábio silêncio; um nefasto e longo conto com alguns personagens queirosianas sobre a soberba, a preguiça e os desvarios da burguesia lusitana; o pânico induzido, sem nome ou rosto, que leva a ensaiar fugas sem destino.

Seja qual for o tema, Agualusa demonstra – e sublinha – em “O Livro dos Camaleões” uma escrita fluida e cristalina, pensada numa vertente intrínseca às suas criações humanas, que optam e seguem uma via filosófica original, curiosa e relevante, no fundo à imagem do próprio original acto de escrever do autor africano, que conduz a sua obra de forma crente, séria e recheada de sentidos vários e sempre pertinentes, assumindo-se como um «angolano em viagem, quase sem raça».

In deusmelivro

quinta-feira, 4 de junho de 2015

Best Coast - “California Nights”

Boas vibrações com sabor a verão


Muitas vezes, a construção - aqui entendida como idealização - da música deve muito ao local onde é feita, à sua atmosfera. Aconteceu isso entre, por exemplo, os The Beatles e Liverpool, os Joy Division e Manchester, os Nirvana e Seattle, os The Beach Boys e a Califórnia.

Nesse sentido, essa mesma Califórnia está para os Best Coast como o céu para as estrelas, neste caso como o sol para as notas musicais. Porque a Califórnia é calor, é praia, é diversão como forma de catarse e é isso que os Best Coast fazem: uma música para encher o ego sob o pretexto das mais vulgares idiossincrasias quotidianas misturadas com laivos de despretensioso mas eficaz lirismo.

Essa filosofia sente-se desde 2010, data em que o duo formado composto por Bethany Cosentino e Bobb Bruno lançou “Crazy For You”, um álbum cheio de energia surf, boa onda, canções curtinhas inspiradas em temas como o amor, a perda e o ciúme, que se justapõem a partir de um certo negrume mas cujo resultado são composições easy-listening, melódicas, brilhantes e descaradamente pop. No fundo, a fórmula é simples (não confundir com simplista) e os cerca de três minutos que duram, em média, as canções dos Best Coast soam com um doce e prazenteiro rebuçado, metáfora que assenta na perfeição a “California Nights”.

Logo a abrir, “Felling Okay” é um claro (e assertivo) piscar de olhos aos solarengos anos 1980, onde a guitarra pop provoca uma paixão imediata, enquanto baixo e bateria são sinónimo da satisfação que significa um copo de água fria depois de um dia de calor. Sem demoras, “Fine Without You” avança na direção de um turbilhão emotivo suportado pela voz de Cosentino, que emerge sobre um riff acutilante. São as duas primeiras canções de “California Nights” e são dois bons exemplos do que nos reserva esta terceira toma da discografia dos Best Coast.

Tal como nos anteriores trabalhos da banda, a produção a si associada sabe o que fazer para não tirar sentido à voz e música. Canções como “In My Eyes” e “Run Throught My Head” são, por exemplo, formas inteligentes de lidar com as camadas estruturais entre a reverberação das guitarras, a omnipresença da dupla baixo-bateria e a melosa interpretação de Consentino. Essa fórmula resulta também nos momentos mais calmos (ou “negros”) do disco, como “Wasted Time” ou “California Nights”.

E, para provar que os Best Coast não se deitam à sombra da palmeira, existe uma maior noção de distorção em “California Nights” do que nos dois álbuns anteriores, neste caso utilizada como uma ferramenta que infeta toda a estrutura pop que serve de alicerce a um disco que é, felizmente, mais que uma simples estrutura baseada na filosofia verso-refrão-verso.

Fiel aos seus princípios, “California Nights” é um disco coeso, a espaços escuro, e prova que Cosentino e Bruno sabem o que querem fazer com a sua música. O matrimónio entre uma raiz pop e um desafogado sentido indie continua de boa saúde, longe de uma qualquer quebra emocional, com o terceiro disco dos Best Coast a ser uma espécie de lua-de-mel auditiva que renova os laços de uma segura paixão.

Alinhamento:
1. Feeling Ok
2. Fine Without You
3. Heaven Sent
4. In My Eyes
5. So Unaware
6. When Will I Change
7. Jealousy
8. California Nights
9. Fading Fast
10. Run Through My Head
11. Sleep Won't Ever Come
12. Wasted Time

Classificação do Palco: 8/10

In Palco Principal

“A RAPARIGA NO COMBOIO”
DE PAULA HAWKINS

Episódios da Vida Real



Alguns livros, fruto de uma boa estratégia de marketing, antes mesmo de folheados, já estão interiorizados no espírito do leitor. Ainda que não se trate de um fenómeno muito habitual, no passado recente vivemos essa sensação com, por exemplo, o lançamento de livros como “O Pintassilgo” de Donna Tart ou “Quando o Cuco Chama” de Robert Gailbright, a.k.a. J. K. Rowling.

Hoje, dentro do universo literário nacional (e não só) que atire a primeira pedra quem nunca ouviu falar de “A Rapariga no Comboio” (Top Seller, 2015), primeira obra de Paula Hawkins, uma ex-jornalista natural do Zimbabwe que decidiu dedicar-se em exclusivo à escrita de romances.

E dificilmente poderia ter um melhor começo. Em cópia avançada, gentilmente cedida pela editora, pudemos constatar o porquê da obra ter vendido mais de dois milhões de cópias em três meses.
No centro da ação está Rachel Watson, uma dos milhares de pessoas que se serve do comboio para chegar ao seu destino, seja ele o emprego ou outra qualquer fatia de uma atribulada vida que se revela diariamente com um somatório de experiências que alternam entre a rotina, a surpresa e uma complicada aceitação da própria existência.

Num desses episódios de vida real, a caminho do trabalho, Rachel segue com os olhos um cenário habitual. A monotonia da viagem faz com que se concentre em pormenores daquilo que vê. A vista percorre o exterior. Observa casas, pessoas, vidas. Na cabeça de Rachel, essas habitações, as pessoas que observa, têm nomes e vidas imaginárias. E isso acontece em particular cim um casal que “acompanha” diariamente. A viver uma das fases mais dramáticas da sua vida, Rachel atribui a essas duas pessoas, homem e mulher, o ónus da vida perfeita, algo que perdeu recentemente depois de se separar de Tom.

Mas um dia, como qualquer outro, tudo muda. Rachel, no conforto da sua plateia móvel diária, nota que algo se passa com o casal. A sensação é rápida mas a imagem fica gravada dentro de si, para sempre. Perturbada, quer saber o que se passa, o que julga ter acontecido.

Envolta de um misto de sagacidade voyeur e um espírito resiliente que a faz lutar ou ceder face ao prazer fácil do álcool, Rachel entra numa viagem cujo bilhete pode pagar com a própria vida. Decidida, fala com a polícia, conta o que viu, nega-se, afirma-se e torna-se (in)voluntariamente num importante peão de um tabuleiro vertiginoso onde cada jogada afeta a vida de várias pessoas e onde a mentira legitima qualquer ação ou atitude.

Os dados estão assim lançados para um cativante thriller de contornos distorcidos pela própria mente humana e que encontra nas palavras de Paula Hawkins um elo perfeito para a construção de um mistério que se assume como um caleidoscópio de segredos dolorosos que revelam verdades enterradas e cauterizam um passado longínquo.

A construção do curto elenco é uma das mais-valias de “A Rapariga no Comboio” e tanto Rachel como Megan, Anna, Tom ou Scott podem ser a solução ou o problema de toda a trama. Se no início da narrativa a sua dinâmica pode “baralhar” um pouco o leitor (cada capítulo é uma peça única de um quebra-cabeças apresentado sobre a forma de um relato individual e datado que é sinónimo de uma perspetivação espácio-temporal de uma mesma fatia da história) facilmente somos levados a “encarrilar” no todo à boleia de uma narração tripartida.

Entre idiossincrasias, vinganças, medos, obsessões, egoísmos e cenários de bipolaridade(s) coletiva(s), Hawkins cria um enredo que funda uma saudável expetactiva e enleia personagens, vivências, dores e acontecimentos vividos entre um passado que se quer ou lembrado ou esquecido, e um presente vivido em contrarrelógio.

A própria disparidade entre a cadência dos acontecimentos relatados pelas diferentes personagens, especialmente nos casos de Megan e Rachel, lembra uma analogia entre comboios que, a determinada altura do seu percurso vão, invariavelmente, ter de colidir, chocar, e desse acidente resultará fraturas que expõem vidas que misturam fantasia com uma realidade dolorosa ainda que os nomes possam mudar, ser reinventados ou assumir papeis indesejados de outrem.

Com elevadas doses de suspense, “A Rapariga no Comboio” é um livro que fala de gente “normal” e que se devora com avidez, que completa e alimenta a curiosidade mórbida pela vida alheia e que sublinha a ideia de que ninguém está a salvo num mundo em que qualquer um pode não ser o que realmente aparenta.

In Rua de Baixo

quarta-feira, 3 de junho de 2015

Wim Mertens @ CCB

Ondas clássicas em noite perfeita


Na década de 1990, foi com o britânico Michael Nyman que muitos melómanos fizeram as primeiras incursões no universo clássico de tendências mais ou menos minimalistas. O sucesso da banda sonora de “O Piano”, filme de Jane Campion, teve o condão de despertar muitas mentes para uma matemática musical que poucas tangentes cruzava com outros géneros. A curiosidade fez com que muitos explorassem outras músicas e “novos” nomes começavam a fazer sentido auditivo. Entre eles, destacavam-se Philip Glass, John Adams ou Wim Mertens. E foi da genialidade deste último que saiu um dos discos mais emblemáticos da década de 1990. Falamos de “Jardin Clos”, disco editado em 1996, que transportava o ouvinte numa viagem nostálgica, romântica e clássica, especialmente em momentos como “Pierced Heart” ou “Not Me”, exercícios musicais com cerca de dez minutos que mostravam a capacidade de Mertens em comunicar por via das emoções e da melodia, que expressa momentos de excitação, paixão, conflito.

Mas a música de Wim Mertens é, também, uma forma de reflexão filosófica, de contar uma estória, e é isso que (também) está na génese de “Charaktersketch”, álbum que inicia uma trilogia que, nas palavras do compositor, musicólogo, contratenor, vocalista, regente e pianista belga, "serve para pensar os novos desafios da Europa depois de uma crise que vai além do aspeto financeiro". Ainda sem datas de edição, sabemos que o segundo tomo desta trilogia será um disco a solo, com piano e voz, e que o derradeiro capítulo terá alma sinfónica.

E é sob este cenário que chegamos, ansiosamente, a este concerto no CCB. Um espetáculo em formato duo que se dividiu, tal como Mertens já tinha anunciado, em duas partes. Primeiro, “Charaktersketch” teve honras de apresentação na íntegra, e depois recuámos ao passado, quer longínquo quer mais recente, fazendo o cruzamento entre o início da década de 1980, com o belga a explorar temas de discos como “Not At Home” ou “Struggle for Pleasure”, e algumas peças mais contemporâneas, como “No Testament”, “According to the Real” ou “Tactitilly”.

Já com a sala a respeitar o silêncio imposto pelas poucas luzes que compunham o palco, ontem espartano, do grande auditório do CCB, o saxofonista Dirk Descheemaeker e, segundos depois, Wim Mertens invadem o cenário naquela que foi a primeira salva de palmas, ainda que um pouco tímida, da noite. Num ápice, soam os primeiros acordes de “Wegzuwunschen” e a simbiose entre teclas e sopro iniciam uma equação que se manteria intacta, bela e coerente, ao longo de cerca de duas horas. O piano de Mertens e o saxofone de Descheemaeker soam como dois amantes que se respeitam, complementam, valorizam a paixão que os une. Não existem espaços por preencher e os silêncios que surgem são, também eles, notas musicais de excelência, independentemente de falarmos em momentos mais “marciais”, como “Unwillen-nichtwollen”, ou nostálgicos, que encontram eco nas belíssimas “Reihengewebe”, “Uberhandnehmend” ou “According to the One”.

A melancolia de “Wie Mich Dunckt”, por exemplo, foi um dos primeiros momentos de especial cumplicidade, com o público a embarcar numa viagem sonora que o levou a sentir a tranquilidade do fundo de um mar calmo, aqui e ali agitado pela voz tímida mas assertiva de Mertens que, a espaços, conferia uma maior profundidade ao todo emotivo.

Ao fim de cada composição, o público intensificava as palmas. Mertens levantava-se, apontava para a plateia e nunca esquecia a reverência a um Descheemaeker mais reservado nos agradecimentos.
Enquanto a apresentação de “Charaktersketch” evoluía, apoderava-se de quem a ouvia e sentia, a (boa) sensação de um regresso a um lugar onde já se sentiu a felicidade. Ainda que se trate de um disco recente, a empatia entre música e ouvinte é de tal forma intensa que composições como “Earmarked”, “Post and Postures” ou “The Place of Gap” soam a velhos companheiros de luta, a parceiros de uma amizade de décadas que encontram ordem no caos emocional que emana do cimo do palco.

Depois de um curto intervalo, em que deu para ver que o CCB estava praticamente cheio, Mertens e Descheemaeker regressam. Wim Mertens abandona o piano clássico em favor da sua versão elétrica e o exemplar “According to the Real” dá o mote. Logo a seguir, “Gentelmen of Leisure”, recebido com muitas palmas, faz a primeira incursão ao icónico “Struggle for Pleasure”, enquanto “At Home”, outra grande referência musical da década de 1980, mostra a sintonia omnipresente entre os senhores que dividem o palco.

Outro dos momentos que ficará, por certo, mais marcado na memória dos que ontem tiveram o privilégio de estar no grande auditório do CCB foi “Salernes”, apresentado numa versão mais intimista, com o piano de Mertens a fluir, a respirar e transpirar uma harmonia bem sublinhada pelo minimalismo do saxofone. Ainda com o eco dos aplausos em fundo, “Not at Home” inicia em tom de trágica “valsa” em ambiente mais clássico e longe da versão maquinal do original. Mertens não esquece o microfone e, a espaços, enriquece a prestação com a sua voz. A cumplicidade entre músicos e público está agora no auge e, no fim de cada prestação, Mertens abandona o piano, agradece, aponta para a plateia. Antes de uma parca tentativa de abandonar o palco, Mertens e Descheemaeker oferecem “Tactillity” e “No Testament”.

Depois disso, com algum do público a, incompreensivelmente, abandonar a sala, Mertens regressa em formato solo e toca “Watch!” e “4 Mains”, dois momentos de mestria que são uma espécie de reflexo sonoro da alma melódica do belga, que vagueia entre o ambiental e um espartano semblante “sci-fi”.

Já com Descheemaeker em palco, Mertens oferece-nos mais três temas: “Close Cover” e, em puro êxtase, “The Personell Changes” e “Struggle for Pleasure”, duas peças do mais fino quilate que levaram a audiência a presentar os senhores que ocupavam o palco com uma dupla ovação de pé - uma justa homenagem a um dos mais importantes e geniais compositores da música contemporânea.

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