quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

“As Flores de Lótus” de José Rodrigues dos Santos

História viva


Na lombada e na contracapa do livro, lê-se que estamos perante um romance. Não é propriamente uma novidade tratando-se de José Rodrigues dos Santos, mas desta vez o autor português quis ir mais longe.

A trama de “As Flores de Lótus” (Gradiva, 2015) leva-nos numa viagem entre Portugal e Ásia, sob o cenário do final do século XIX e a aurora do XX, período conturbado que tinha como fio condutor um forte pendor revolucionário que fazia cair alguns regimes e ideais em favor de outros, que se revelariam mais complexos e polémicos.

Mas o epicentro da narrativa centra-se, principalmente, nas primeiras décadas do 1900 e da total descredibilização da democracia, não só em Portugal mas nos quatros cantos do planeta, e como consequência direta eclodiram pensamentos autoritários e totalitários.

O português Artur Teixeira, à época já capitão, um dos principais personagens de “As Flores de Lótus”, chega mesmo a conhecer António Salazar, e vive, em primeira mão, o drama em que o sistema político nacional se encontrava, com o descrédito completo dos partidos que se tinham tornado numa espécie de concubinado clientelista, assistindo, na primeira fila, ao edifício do Estado Novo, e tem nas suas mãos a tarefa de convencer o homem nascido em Santa Comba Dão a assumir as rédeas do país.

Mas a revolução também assola o território asiático. No Japão, Satake Fukui entristece com um país cuja ferida faz dividir as suas gentes entre a tradição e a modernidade. No seu âmago, cresce a vontade de mudar e envolve-se num magnânimo braço de ferro com Sawa desde os tempos de escola, confrontando-se assim entre uma crescente vontade modernista e o pensamento tradicional militarista.

Na China, o nascimento da pequena Lian-hua trazia um aviso: os seus invulgares e serenos olhos azuis serviam como uma espécie de veredicto para a tempestade que ameaçava o colossal território. No coração da tempestade estava o eterno confronto entre nacionalistas, comunistas e japoneses. Para complicar o cenário, Lian-hua é raptada por um emergente radical comunista, de seu nome Mao Tse-tung.

Para completar quadro, na Sibéria, os bolcheviques invadem a pequena propriedade do clã Skuratov e falam dos feitos de um certo Estaline. A impressionável Nadeszheda vê-se assim no meio de um ciclo de sofrimento onde o medo e a fome eram locais comuns.

Estas quatro histórias, que no fundo são uma só, mostram os destinos de quatro famílias e formam o primeiro tomo de uma saga que promete encantar os fãs da escrita do autor de livros como “A Chave de Salomão”. As suas três partes revelam um ritmo elevado mas que pode gerar, principalmente nas passagens de maior contextualização histórica, alguma sensação de relato apressado dos acontecimentos mas, ainda assim, bem estruturado.

O discurso de Rodrigues dos Santos é muito visual, cinematográfico até, mas, por vezes, perde-se no “excesso” de informação dos já referidos relatos verídicos. Ao leitor pede-se alguma paciência e, em alguns momentos, sente-se uma espécie de interlúdio narrativo e somos transportados para o interior de uma sala de aula de História, principalmente quando as páginas são ocupadas pelos longos diálogos entre Artur e Teófilo Baptista, professor de Moral e Religião e de Philosophia.

Tal como na maioria dos seus livros, o conhecido jornalista da RTP, e o autor que mais vende livros em Portugal, exibe um elevado grau de investigação sendo esse o mais interessante trunfo deste livro, tornando os principais personagens das quatro estórias numa espécie de veículos da mais alva pureza intelectual e que encontram acertada metáfora na referida flor de lótus.

Mas esta obra é também sinónimo da paixão que José Rodrigues dos Santos tem pela própria História e da sua vontade, e capacidade, de recriar uma época, nas palavras do própria autor «tentando tornar a História viva». Esse jogo de recuar na memória é um dos alicerces deste livro ambicioso que nas últimas páginas anuncia “O Pavilhão Púrpura”, o próximo episódio desta saga pois, como se escreve no final de “As Flores de Lótus”: «o mais interessante ainda está para vir».

In Rua de Baixo

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