segunda-feira, 9 de novembro de 2015

“O Drible”
de Sérgio Rodrigues

O jogo só termina quando o árbitro apita


O futebol é uma arte. A literatura também. Juntar estes dois mundos pode parecer estranho, uma quase incompatível heresia, mas quando feito com a genialidade dos bons protagonistas o resultado é uma goleada literária que explora na plenitude os trunfos da bola e das letras.

Quase como metáforas perfeitas da geometria do jogo da vida, alguns lances nascidos dentro das quatro linhas ficam cravados na memória como hinos eternos do mais cristalino estado de pureza artística. Dentro deste universo, lembro, por exemplo, o calcanhar do Madjer na final de Viena ou, mais recentemente, a triangulação “galática” entre Gaitán e Lima no dérbi eterno de Lisboa.

E é o chamado “ópio do povo” que inspirou o brasileiro Sérgio Rodrigues, ficcionista, crítico literário e jornalista, a escrever “O Drible” (Companhia das Letras, 2015), um livro que transporta o leitor para o colorido e particular universo dos anos 1970, cujas primeiras páginas remetem para o primeiro Mundial de Futebol disputado no México. O calendário marcava o dia 17 de junho de 1970, o Brasil ganhou ao Uruguai por três a um mas o mais emblemático lance do jogo não deu em golo.

A jogada durou nove segundos e a simulação de Pelé sobre Mazurkiewicz, o guarda-redes uruguaio, ficou registada nos anais da história do futebol. São precisas seis páginas para Sérgio Rodrigues recuperar esse momento e, no final, quase como num fôlego, visualizamos ou relembramos esse lance genial.

É com esse pedaço de epifania desportiva protagonizada Edson Arantes do Nascimento que está lançada a narrativa que fez com que Sérgio Rodrigues arrecadasse o Grande Prémio Portugal Telecom de Literatura de 2014, um romance apaixonado e por vezes envolto de uma enorme camada de tensão que utiliza a metáfora de um drible, qual momento de inaudita magia, para trazer a lume as incertezas da vida e os lugares estranhos que a mesma nos pode encaminhar.

No cerne da trama está Neto, um quarentão revisor de livros de auto-ajuda que vive uma existência amargurada, sem luz. Fechado numa concha que remete para a cultura pop, kitch, nos anos 1970, tem como hobby colecionar velharias e romances fugazes com raparigas do bairro onde vive. Conduz um Maverick preto de 1977 (o seu «Batmóvel») e é no conforto de um sofá em tons zebra que ouve a sua datada coleção de vinil, outro dos seus maiores passatempos.

O seu maior desgosto encontra eco na falta de atenção de um pai “ausente”, homem despedaçado pelo suicídio da sua mulher e mãe de Neto, quando este contava apenas cinco primaveras. Esse homem é Murrillo Filho, conhecido cronista desportivo dos anos dourados do futebol brasileiro, que agora tenta aproximar-se do filho depois de saber que a morte o espera abraçar em breve.

Entre pai e filho ergue-se uma muralha que dificilmente será transposta, barreira essa alicerçada em mais de duas décadas de mágoas, desconforto esse que é (pouco) contrariado por via de encontros semanais, ao domingo, entre ambos e cujo tema central são relatos e episódios míticos de jogadores de futebol que há muito deixaram os relvados.

À medida que pai e filho e adensam a relação, tal como num desafiante e entusiasmante jogo de futebol, os nervos crescem, as dúvidas aumentam, a vida acontece. O mérito é totalmente da responsabilidade de Sérgio Rodrigues que revela, página a página, um romance compulsivo, escrito à base de uma linguagem que funde estilos “coloquiais” e literários, que nos leva até às tortuosas memórias da ditadura brasileira, época que guarda um terrível segredo da família de Neto e Filho.

Ainda que “O Drible”, eleito um dos 15 melhores romances brasileiros do século XXI pelo jornal brasileiro Brasil Post, seja uma trama carregada de dor, sentimentos (quase) perdidos e reviravoltas, Sérgio Rodrigues estabelece um equilíbrio emocional entre uma carga mais pesada, triste, sem esperança, e alguns toques de habilidade fruto de uma sensibilidade humorística, “taticamente” irrepreensível, que nos prende a atenção até mesmo ao apito final do árbitro, no sofrido tempo de compensação, revelando-se digno de grito de superação até ao último suspiro.

In Rua de Baixo

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