quarta-feira, 3 de junho de 2015

Wim Mertens @ CCB

Ondas clássicas em noite perfeita


Na década de 1990, foi com o britânico Michael Nyman que muitos melómanos fizeram as primeiras incursões no universo clássico de tendências mais ou menos minimalistas. O sucesso da banda sonora de “O Piano”, filme de Jane Campion, teve o condão de despertar muitas mentes para uma matemática musical que poucas tangentes cruzava com outros géneros. A curiosidade fez com que muitos explorassem outras músicas e “novos” nomes começavam a fazer sentido auditivo. Entre eles, destacavam-se Philip Glass, John Adams ou Wim Mertens. E foi da genialidade deste último que saiu um dos discos mais emblemáticos da década de 1990. Falamos de “Jardin Clos”, disco editado em 1996, que transportava o ouvinte numa viagem nostálgica, romântica e clássica, especialmente em momentos como “Pierced Heart” ou “Not Me”, exercícios musicais com cerca de dez minutos que mostravam a capacidade de Mertens em comunicar por via das emoções e da melodia, que expressa momentos de excitação, paixão, conflito.

Mas a música de Wim Mertens é, também, uma forma de reflexão filosófica, de contar uma estória, e é isso que (também) está na génese de “Charaktersketch”, álbum que inicia uma trilogia que, nas palavras do compositor, musicólogo, contratenor, vocalista, regente e pianista belga, "serve para pensar os novos desafios da Europa depois de uma crise que vai além do aspeto financeiro". Ainda sem datas de edição, sabemos que o segundo tomo desta trilogia será um disco a solo, com piano e voz, e que o derradeiro capítulo terá alma sinfónica.

E é sob este cenário que chegamos, ansiosamente, a este concerto no CCB. Um espetáculo em formato duo que se dividiu, tal como Mertens já tinha anunciado, em duas partes. Primeiro, “Charaktersketch” teve honras de apresentação na íntegra, e depois recuámos ao passado, quer longínquo quer mais recente, fazendo o cruzamento entre o início da década de 1980, com o belga a explorar temas de discos como “Not At Home” ou “Struggle for Pleasure”, e algumas peças mais contemporâneas, como “No Testament”, “According to the Real” ou “Tactitilly”.

Já com a sala a respeitar o silêncio imposto pelas poucas luzes que compunham o palco, ontem espartano, do grande auditório do CCB, o saxofonista Dirk Descheemaeker e, segundos depois, Wim Mertens invadem o cenário naquela que foi a primeira salva de palmas, ainda que um pouco tímida, da noite. Num ápice, soam os primeiros acordes de “Wegzuwunschen” e a simbiose entre teclas e sopro iniciam uma equação que se manteria intacta, bela e coerente, ao longo de cerca de duas horas. O piano de Mertens e o saxofone de Descheemaeker soam como dois amantes que se respeitam, complementam, valorizam a paixão que os une. Não existem espaços por preencher e os silêncios que surgem são, também eles, notas musicais de excelência, independentemente de falarmos em momentos mais “marciais”, como “Unwillen-nichtwollen”, ou nostálgicos, que encontram eco nas belíssimas “Reihengewebe”, “Uberhandnehmend” ou “According to the One”.

A melancolia de “Wie Mich Dunckt”, por exemplo, foi um dos primeiros momentos de especial cumplicidade, com o público a embarcar numa viagem sonora que o levou a sentir a tranquilidade do fundo de um mar calmo, aqui e ali agitado pela voz tímida mas assertiva de Mertens que, a espaços, conferia uma maior profundidade ao todo emotivo.

Ao fim de cada composição, o público intensificava as palmas. Mertens levantava-se, apontava para a plateia e nunca esquecia a reverência a um Descheemaeker mais reservado nos agradecimentos.
Enquanto a apresentação de “Charaktersketch” evoluía, apoderava-se de quem a ouvia e sentia, a (boa) sensação de um regresso a um lugar onde já se sentiu a felicidade. Ainda que se trate de um disco recente, a empatia entre música e ouvinte é de tal forma intensa que composições como “Earmarked”, “Post and Postures” ou “The Place of Gap” soam a velhos companheiros de luta, a parceiros de uma amizade de décadas que encontram ordem no caos emocional que emana do cimo do palco.

Depois de um curto intervalo, em que deu para ver que o CCB estava praticamente cheio, Mertens e Descheemaeker regressam. Wim Mertens abandona o piano clássico em favor da sua versão elétrica e o exemplar “According to the Real” dá o mote. Logo a seguir, “Gentelmen of Leisure”, recebido com muitas palmas, faz a primeira incursão ao icónico “Struggle for Pleasure”, enquanto “At Home”, outra grande referência musical da década de 1980, mostra a sintonia omnipresente entre os senhores que dividem o palco.

Outro dos momentos que ficará, por certo, mais marcado na memória dos que ontem tiveram o privilégio de estar no grande auditório do CCB foi “Salernes”, apresentado numa versão mais intimista, com o piano de Mertens a fluir, a respirar e transpirar uma harmonia bem sublinhada pelo minimalismo do saxofone. Ainda com o eco dos aplausos em fundo, “Not at Home” inicia em tom de trágica “valsa” em ambiente mais clássico e longe da versão maquinal do original. Mertens não esquece o microfone e, a espaços, enriquece a prestação com a sua voz. A cumplicidade entre músicos e público está agora no auge e, no fim de cada prestação, Mertens abandona o piano, agradece, aponta para a plateia. Antes de uma parca tentativa de abandonar o palco, Mertens e Descheemaeker oferecem “Tactillity” e “No Testament”.

Depois disso, com algum do público a, incompreensivelmente, abandonar a sala, Mertens regressa em formato solo e toca “Watch!” e “4 Mains”, dois momentos de mestria que são uma espécie de reflexo sonoro da alma melódica do belga, que vagueia entre o ambiental e um espartano semblante “sci-fi”.

Já com Descheemaeker em palco, Mertens oferece-nos mais três temas: “Close Cover” e, em puro êxtase, “The Personell Changes” e “Struggle for Pleasure”, duas peças do mais fino quilate que levaram a audiência a presentar os senhores que ocupavam o palco com uma dupla ovação de pé - uma justa homenagem a um dos mais importantes e geniais compositores da música contemporânea.

In Palco Principal

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