sexta-feira, 30 de maio de 2014

Ólafur Arnalds & Rodrigo Leão @ CCB

Harmonia em tons neoclássicos



Quem conhece a música de Ólafur Arnalds e Rodrigo Leão, encontra diversos pontos de contacto entre os compositores. Se o islandês é um dos maiores nomes do movimento neoclássico, Leão faz a ponte entre a referida sonoridade e uma espécie de ritual sonoro que funde música erudita com um pouco de pop de arranjos clássicos, cuja súmula resulta em exercícios sonoros repletos de elementos oníricos. Ambos os músicos abordam a linguagem musical através de uma atmosfera que roça o contemplativo, cujo contexto assenta que nem uma luva no espetro do formato banda sonora, género para o qual são muito solicitados.

Foi um bem-disposto Ólafur Arnalds que abriu uma noite de sala praticamente esgotada e, tal como é habitual, no início dos seus concertos, o islandês pediu ao público para cantar. O objetivo é captar o registo sonoro de algumas notas soltas pelas gargantas da audiência, que depois são captadas pelo seu “preguiçoso” computador, que, com a ajuda do precioso “Mr. Jobs”, as transforma num interessante loop, que acompanha algumas das suas composições.

E foi na companhia desse registo que Arnalds tocou as primeiras notas de um piano que tem o condão de enfeitiçar quem o ouve. “Pú ert Sólin” e “Pú ert Joroin”, duas composições de “…and they have escape the weight of darkness”, abriram um concerto que seria divido pelo magnífico talento dos dois músicos, que se fizeram acompanhar de alguns convidados, nomeadamente um quarteto composto por dois violinos, uma viola de arco e um violoncelo, e duas maravilhosas vozes.

Grande parte de atuação de Ólafur Arnalds recaiu no reportório do recente “For Now I Am Winter”, um disco de beleza ímpar que é composto por peças musicais que fazem o tempo parar, fazem a vida ficar fora do seu eixo, para dar lugar a um reino onde é a beleza musical que reina. Fruto de um jogo entre piano, cordas, salpicos ambientais electro-pop, “Only the Winds” enche a atmosfera do Grande Auditório do CCB e todas as almas serenam entre o silêncio e a melodia em forma de sussurro. As palmas exteriorizam os batimentos cardíacos da uma audiência rendida ao talento de Ólafur Arnalds, que chamaria ao palco o seu amigo e camarada de estúdio e estrada, Arnor Dan. A música dá espaço à voz e “For Now I Am the Winter” é sinónimo de uma simbiose celestial entre matéria orgânica e máquina. Comparativamente com o registo de estúdio, a interpretação de Arnalds e Dan torna-se mais humana e timidamente crua.

O fascinante falsete de Arnor Dan jura fiel matrimónio à música de Arnalds e “A Sutter”, composição ironicamente apresentada pelo multi-instrumentalista islandês como uma tentativa de participação num festival da Eurovisão, assume-se como uma chuva refrescante em dia de verão. A perfeição é uma definição aceitável quando se trata da música feita por esta dupla, que teve em “Old Skin”, também resgatado de “For Now I Am the Winter”, um dos momentos mais emocionantes da noite.

Arnor abandona o palco mas a harmonia teima em permanecer intocável. “Near Light” continua a espalhar notas neoclássicas de bom gosto, na companhia de pitadas eletrónicas servidas em camadas suaves.
Cientes da excelente ementa musical servida pelo compositor islandês, Rodrigo Leão e Celina da Piedade juntam-se ao cardápio. A entrada é servida com “Tomorrow’s Song”, de “Living Room Songs”, com Leão a assumir também as teclas e com o acordeão de Celina da Piedade a sublinhar o panorama geral. Antes de sair momentaneamente do palco, Arnalds tocou a desarmante “Ljósio”, um tema que remete para “Found Songs”, registo de 2009.

Agora dono do palco, Rodrigo Leão começa a sua atuação com uma das canções mais emblemáticas da sua carreira, ainda ao serviço dessa experiência ímpar que foram os Madredeus. “As Ilhas dos Açores” invadem a atmosfera de forma solene, através de um lamento nostálgico, para logo a seguir darem lugar a “À Espera de Sofia” e “Histórias”.

“White House’s Waltz”, que faz parte da banda sonora de “The Butler”, enche a sala do CCB de motivos valsantes, onde os violinos marcam o compasso. O resultado são muitos aplausos. A seguir surge “Espiral II”, envolta de um espirito mais dinâmico, e traz à memória o universo musical de Wim Mertens.

Por falar em memória, Rodrigo Leão não esqueceu os primeiros tempos da sua carreira a solo e, na companhia da maravilhosa voz da soprano Ângela Silva, fez a plateia recuar até a “Alma Mater” e “Ave Mundi Luminari”. Seria a lírica e épica “Carpe Diem” a abrir esta sequência de quatro temas, que tiveram seguimento com “Imortal”, “Ave Mundi” e “Ascensão”.

O regresso ao palco de Ólafur Arnalds deu lugar a mais dois temas, com “Mar Estranho” e “Slower” a confirmarem o entrosamento musical entre os músicos, através de um belíssimo diálogo a quatro mãos.
Com o encore, ainda houve tempo para mais dois temas. Primeiro, sozinho em palco, Arnalds foi responsável por um dos momentos mais intimistas da noite. “Lag Fyrir Ommu”, canção dedicada à sua avó, musa inspiradora e fã incondicional de Chopin, foi sinónimo de momentos de inebriante beleza. Depois, a fechar uma excelente noite, com toda a gente em palco, Arnor Dan cantou “Spleepless Heart”, de Rodrigo Leão, uma composição que encerrou de forma brilhante um concerto memorável.

In Palco Principal

Novas edições da obra de José Saramago

Porto Editora reedita nove livros do Nobel português



A Porto Editora prometeu e cumpriu. Estão já hoje nos escaparates nove livros da autoria de José Saramago, fruto do matrimónio entre o maior grupo editorial do país e as herdeiras da obra de um dos nomes grandes da literatura portuguesa.

Presentes na Casa dos Bicos, sede da Fundação José Saramago, Pilar del Rio e Violante Saramago estavam visivelmente emocionadas com esta união, algo que a filha de Saramago fez questão de sublinhar ao lembrar a vontade do pai em ter todo o seu espólio literário associado a uma editora portuguesa.

A cerimónia foi conduzida por António Manuel Valente que não escondeu o orgulho de ter um nome como Saramago nas fileiras da Porto Editora, empresa que faz parte do grupo que organiza o consagrado galardão literário “Prémio José Saramago”.

Vasco Teixeira, administrador da Porto Editora, congratulou a escolha das herdeiras e a confiança depositada na instituição que representa, adiantando que esta parceria vai também encontrar ecos práticos em termos de apoio direto à Fundação José Saramago para que a mesma possa manter a missão de divulgar devidamente a obra e vida do autor de “O Memorial do Convento”.

Quanto ao lançamento propriamente dito, estamos perante nove títulos que foram sujeitos a pequenas afinações relativamente a gralhas e imperfeições através de um processo rigoroso e profissional, garante Manuel Valente. Mas as maiores diferenças entre estes livros e as anteriores edições acontecem a nível gráfico.

Fruto de um notável trabalho criativo da responsabilidade do atelier silvadesigners, as capas destes novos livros contaram com o contributo de nomes como Álvaro Siza Vieira, Baptista-Bastos, Eduardo Lourenço, Dulce Maria Cardoso, Gonçalo M. Tavares, Júlio Pomar, Lídia Jorge, Mário de Carvalho e Valter Hugo Mãe, autores que emprestaram a sua caligrafia por forma a escrever o título de cada obra, um gesto singelo que pretende agradecer o muito que o escritor natural da aldeia da Azinhaga fez pela literatura portuguesa.

Para além dos livros apresentados (“A Caverna”, “A Noite”, “A Viagem do Elefante”, “As intermitências da Morte”, “As Pequenas Memória”, “Ensaio sobre a Lucidez”, “História do Cerco de Lisboa”, “Manual de Pintura e Caligrafia” e “O Homem Duplicado”), foi anunciado que esta coleção vai ter no total cerca de 40 títulos e que o lançamento dos restantes vai depender da caducidade legal que os liga à antiga editora, ainda que Pilar del Rio estime que a mesma poderá estar completa daqui a cerca de dois anos.

Com a Feira do Livro a decorrer, e num ano em que a Porto Editora apaga as 70 velas, Vasco Teixeira relembrou ainda a existência de dois pavilhões especiais dedicados a José Saramago e Fernando Pessoa naquele que é o maior certame de divulgação literária do país.

In Rua de Baixo

terça-feira, 27 de maio de 2014

“Só os Amantes Sobrevivem”
de Jim Jarmursch

Teorização quântica da paixão



Alguns cientistas defendem que o entrelaçamento quântico possibilita que dois ou mais objectos se liguem de forma excecionalmente una e que uma das partes não existe sem a outra, nem que isso represente uma distância de milhões de anos-luz.

É com base nesta reflexão que Jim Jarmusch pensou em Adam (Tom Hiddleston) e Eve (Tilda Swinton), o casal trágico-apaixonante do mais recente filme do realizador de “Dead Man” que sustenta de forma magnífica “Só os Amantes Sobrevivem”, uma experiência romântica que se assume como uma metáfora criativa sobre a questão da eternidade do ponto de vista de dois vampiros que sentem a vida eterna de perspetivas diferentes.

Juntos desde sempre Adam e Eve tem uma relação fora do comum. Ele enfrenta uma das suas fases mais depressivas e tem no cenário decrépito e desolador de uma Detroit à beira do colapso a sua morada. Ela, encantadoramente clássica, devora livros sob a tranquilidade exótica de Tânger.

Para ambos, enquanto vampiros, a vida é sinónimo de uma vivência noturna, de óculos escuros e luvas. Ambos cultivaram relações que permitem alimentar a sua sede de sangue sem recorrer ao vulgar assassinato. Também para Adam e Eve, a cultura é forte alicerce. Ele é um músico experiente, ela uma conhecedora de literatura. Ele colecionada guitarras, ela trata os livros como parte da sua alma. Ele venera Jack White e os Dirtbombs, ela é apaixonada pela obra de Cervantes e Kafka. Ele tem em Ian (Anton Yelchin) o seu braço-direito, ela confia a sua sorte a Kit aka Christopher Marlowe (John Hurt). Ambos nutrem uma paixão incondicional pelo outro.

Depois de uma conversa patrocinada pelas novas tecnologias, Eve constata a depressão que envolve Adam. Vitima das loucas políticas dos zombies (leia-se, comuns mortais) Adam confessa a sua desilusão face à humanidade ponderando mesmo o suicídio com uma bala especial. A sua opção pela reclusão é a par de Eve e da música, a sua razão de viver.

Eve, preocupada, decide rumar a Detroit para junto do seu amado. Consigo leva uma “bagagem” repleta de clássicos da literatura assim como um sonho que lhe atormenta os dias. A presença onírica de Ava (Mia Wasikowska), sua irmã, deixa-a preocupada. Mais, também Kit já apreendeu que Ava está a chegar e a sua personalidade impetuosa e imatura vai deixar marcas, de facto.

Estão assim lançados os dados para “Só os Amantes Sobrevivem”, um filme poético, elegante, que simboliza o perfil de Jarmusch pela sensibilidade estética, algo aristocrática e nostálgica, que encerra sobre si mesma uma sensação de solidariedade aqui e ali salpicada por um acutilante sarcasmo sob a forma, por exemplo, de uma crítica ao trabalho de William Shakespear ou ao simples tragar de um gelado de sangue O-negativo.

Realizado sem pressas e com uma narrativa propositadamente lenta – para os vampiros algumas centenas de anos são apenas curtos pedaços de História – “Só os Amantes Sobrevivem” é um hino ao romantismo assim como uma pertinente crítica política e social e um apontar de dedo a dependências que aqui assumem a forma de uma necessidade de sangue.

As muitas referências a nomes da cultura mundial e a maravilhosa banda sonora (o momento com Yasmine Hamdan é sinónimo de uma comovente e extraordinária associação entre sentimentos, música e imagem) tornam a realização de Jarmusch como uma espécie poética onde os planos picados servem de elemento aglutinador de toda a ação.

Em vez de vulgares planos de corte, Jarmusch serve-nos deliciosos momentos sonoros onde as guitarras ao desalinho (sons tão caros os universo do realizador) e os feedbacks delicados dão um toque indie muito interessante e servem de guias face ao cenário quase apocalíptico da (ex-) Motor City.

Ainda que se trate de um filme de vampiros, não se espere de “Só os Amantes Sobrevivem” cenas gore, paixões teenagers ou vulgares rapazes da noite. Estamos no elegante universo de Jim Jarmusrcsh e os caninos apenas crescem de forma subtil e quase ensimesmada. O ambiente é decrépito, sim, e é o rock and roll que mais ordena ainda que envolto de assinaláveis doses de poesia e bom gosto. Ainda assim, lamentavelmente, Adam e Eve vivem na sombra e têm de beber sangue para viver, nem que para tal tenham de o pedir por favor.

In Rua de Baixo

sexta-feira, 23 de maio de 2014

“Quase Gigolo”
de John Turturro

Paixão e comédia com sabor a pistácio



Woody Allen. Brooklyn, Nova Iorque. John Turturro. Outono. Jazz. Estas são algumas das palavras-chave que ajudam a entender “Quase Gigolo”, a mais recente aventura de John Turturro enquanto realizador, e também ator, que junta no mesmo filme gente ilustre como o já referido realizador de “Annie Hall”, assim como Sharon Stone, Vanessa Paradis e Sofía Vergara.

Mas vamos aos factos. Fioravante (Turturro) e Murray (Allen) são amigos de longa data. O primeiro trabalha na livraria do segundo, negócio à beira da rutura, e faz também um part-time numa florista. Ambos lutam contra dificuldades financeiras graves.

Numa das consultas de Murray com a Drª Parker (Sharon Stone), a sua dermatologista, constata que a belíssima médica tem um sonho: fazer uma ménage à trois na companhia da sua amiga “caliente” Selima (Sofía Vergara). A única coisa que precisam é de um homem que queira entrar na cena.

Murray pensa imediatamente em Fioravante para o cargo que, ainda que de forma hesitante, acaba por aceitar a demanda. Assim, nasce a dupla “Virgil & Bongo”, prostituto e proxeneta, sócios de um negócio lucrativo e onde o prazer é o objetivo.

Altamente convicto da atividade que agora abraça, Murray procura potenciais clientes e de forma inesperada vê em Avigal (Vanessa Paradis) a senhora que se segue a juntar-se ao rol de Fioravante. Mas Avigal é uma pessoa diferente, especial. Viúva de um rabino e mãe de seis filhos vive em uma comunidade avessa a intrusões, fechada sob as fortes grades da religião judaica.

Ainda assim, Murray consegue convencer Avigal a requisitar os serviços do seu sócio e desse encontro nasce uma estranha e emotiva relação. Desconfiados das recentes saídas de Avigal, os responsáveis pela patrulha do bairro – conhecidos como Shomrim –, na pessoa de Dovi (Liev Scheriber), iniciam uma manobra de espionagem de forma a descobrir o destino de Avigal.

Ao conhecer a trama de “Quase Gigolo” surge logo à partida a ideia de “Midnight Cowboy”, um filme da autoria de John Schlesinger que data de 1969 e contava com a participação de John Voigt e Dustin Hofman nos papéis de alguém que quer ganhar dinheiro na troca de favores sexuais e outro que trata de fornecer clientes ao primeiro. Coincidência? Mais do que isso, garante Turturro que afirma ter-se inspirado em personagens como Joe Buck e “Ratso” Rizzo para chegar a Fioravante e Murray.

O resultado é um delicioso filme urbano com o cenário outonal de Nova Iorque a encaixar que nem uma luva nos diálogos neuróticos e bem-dispostos entre os dois personagens principais cujos temas versam sobre a mortalidade, a vida, a solidão, a moralidade, a autoestima.

Com um leque de atores de excelência, Turturro consegue pegar naquilo que os mesmos têm de melhor para oferecer. Vejamos, Allen faz de si mesmo mas de uma forma que não o víamos há muitos filmes: cómico, livre, espontâneo, autêntico. Já Sharon Stone mantém o perfil de bomba sexual herdado de “Atração Fatal” mas em versão madura, enquanto Sofía Vergara destila charme e sensualidade latina. Por fim, Paradis é aos 41 anos a imagem da eterna menina doce, envolta de uma beleza natural e desarmante.

Ver “Quase Gigolo” é passar hora e meia com o sorriso no rosto ainda que a gargalhada não seja para aqui chamada. John Turturro dá ao seu próprio personagem, e camaradas de tela, uma personalidade vincada, uma paixão característica que em cenas como a volta de carrossel entre Avigal e Fioravante explodem na direção de quem está na sala de cinema. Particularmente, Fioravante foge ao estereótipo do galã, do sedutor nato. É um homem comum que tem a particularidade de atrair a atenção de mulheres belas e sensuais e através de um especial sentimento de solidariedade carnal assume-se com um antídoto contra a depressão relacional e uma forma de quebrar a monotonia emocional.

O filme é um puro exercício de combate ao estereótipo e serve-se do elemento-surpresa para garantir essa filosofia. Murray é dos personagens mais acutilantes e possui uma argumentação difícil de combater. Um exemplo disso é quando se refere a Fioravante como: “um homem nojento mas de forma atraente”.

“Quase Gigolo” foi idealizado para uma audiência madura e centra-se na exploração direta e, podemos dizer honesta, de personagens que não conseguem ultrapassar fragilidades embora tenham as mesmas presentes no seu íntimo ainda que tal seja um absurdo. Convenhamos que é preciso uma imaginação fértil para conseguir transformar um velho dono de uma livraria num chulo e o seu recatado colaborador num gigolô, ainda para mais capaz de seduzir deusas como Stone e Vergara.

Com tal, podíamos até afirmar que o argumento perde alguma lucidez entrando num oceano onírico mas a argumentação de Murray consegue levar para longe esse pensamento. Nem mesmo a incerteza relacional de “Papa Mo” (Murray) no seu contexto familiar chega para colocar em cheque a pertinência deste filme.

Sinceramente, não precisamos de saber que tipo de relacionamento existe entre Murray e Othella (Tonya Pinkins) ou quais os laços entre o “casal” e os pequenos membros da família. Aquilo que nos enche a alma são os magníficos diálogos deste filme que tem na sua banda sonora um precioso aliado na própria construção e apresentação da estória. “Quase Gigolo” é, acima de tudo, uma comédia “romântica” que foge a sete pés do entretenimento gratuito servindo-se do seu inato charme para afastas as suas próprias idiossincrasias.

In Rua de Baixo

quinta-feira, 22 de maio de 2014

Frankie Chavez
"Heart & Spine"

Acreditar é preciso



Enquanto uns falam de crise, na falta de oportunidades e na desesperança que assola o país, outros agarram com unhas e dentes a mais pequena hipótese para serem felizes, através de assinaláveis doses de empreendedorismo e, obviamente, talento. Como que envolta numa redoma especial que afasta para longe maus presságios, a música feita em Portugal tem, nos últimos anos, crescido de forma exponencial. Nascem novas bandas, afirmam-se outras com mais notoriedade no plano nacional ou, imagine-se a ousadia, internacional.

Decidida e definitivamente, os músicos portugueses perderam o medo e vão à luta. Dentro desse destemido leque está Frankie Chavez, que recentemente lançou “Heart & Spine”, o seu segundo longa duração, depois de em 2010 ter editado um EP homónimo e, no ano seguinte, o álbum “Family Tree”.

“Heart & Spine” é, podemos dizer, um filho da luta - um disco que nasceu a partir de uma plataforma de crowdfunding, tendo sido editado através da editora Search Records, um selo criado pelo próprio músico. A sua distribuição ficou, por sua vez, a cargo da conhecida multinacional Universal.

Seguindo uma filosofia de continuidade face a “Family Tree”, “Heart & Spine” assume um perfil mais elétrico, onde a plástica sonora, fruto de uma mescla de rock, blues e folk, encaixa bem num espírito ao vivo, fórmula que Chavez diz ter seguido durante as gravações que duraram cerca de três anos, com as músicas a surgirem a espaços, na ressaca de alguns concertos.

O resultado é um disco coeso, atraente e cheio de alma, que centra as suas atenções na mestria e empenho que Frankie Chavez emprega na sua música, que, no fundo, resulta de uma garra que prende a atenção dos mais distraídos.

Ao longo dos 13 temas de “Heart & Spine”, Chavez contou com a colaboração de amigos, como João Correia, músico de bandas como os Tape Junk ou Julie & The Carjackers, que ajudou na bateria, vozes e precursão. As participações não ficam por aqui e em temas como “Don’t Leave Tonight” ou “Heart & Spine” Chavez partilhou o microfone com Erica Buettner e Selma Uamusse. Num ambiente mais cabaret blusy, a bonita “Morning Train” contou com a particular musicalidade do Groove Quartet.

Como tema de fundo, este disco aborda a dificuldade com que a sociedade tenta ultrapassar momentos difíceis e tal está bem patente em “Fight”, faixa que abre o disco e em que, entre golfadas de um apetitoso rock and roll, Frankie Chavez apela à luta: “I may have lost this battle but i sure ain’t gonna lose the fight”. Filosofia semelhante segue o tema-título, “Heart & Spine”, outra composição que funde blues e rock de uma forma absolutamente inebriante. Procura-se a salvação da alma e Chavez consegue-o através da sua guitarra.

O disco oscila entre momentos mais agressivos e outros contemplativos, como é o caso, por exemplo, da bonita e folk “Sweet Life”, a lembrar o universo musical de Dylan e Springsteen, ou “Pine Trees”, uma composição repleta de motivos campestres, onde a chuva surge como pano de fundo para uma guitarra planante.

O dueto com Erica Buettner em “Don’t Leave Tonight” é um dos momentos mais bonitos do disco e apenas peca pela curta duração, pois, acreditem, esta é uma daquelas canções que se alojam na alma à primeira audição. Essa calmaria sonora encontra eco em outros momentos do disco, tal como em “Sail Upon Your Shore” e “Truth Can Break a Bone”, faixas que encerram o trabalho. Pelo meio, podemos contar com mais pérolas musicais, mais agitadas, como o são “Long Gone”, “Psychotic Lover” ou “I’m Leaving”.

Entre marés acústicas, ondas de maior agitação rock e blues, e alguns redemoinhos folk, “Heart & Spine” é um oceano de excelentes canções. Para além de um enorme talento, Frankie Chavez coloca muita da sua alma e honestidade neste seu segundo álbum, que tem tudo para ser um dos melhores discos do ano. Longe vá o mau augúrio e as tormentas, mas é neste momento obrigatório dizer que a música portuguesa está de boa saúde e recomenda-se, sendo “Heart & Spine” a confirmação do seu estado de graça. Assim continue.

Alinhamento:

01.Fight
02.Long Gone
03.Heart & Spine
04.Sweet Life
05.Pine Trees
06.Psychotic Lover
07.Don’t Leave Tonight
08.Morning Train
09.I’m Leaving
10.Her Love
11.Voodoo Mama
12.Sail Upon Your Shore
13.Truth Can Break A Bone

Classificação do Palco: 8/10

In Palco Principal

quarta-feira, 21 de maio de 2014

“Ela Está de Partida”
de Emmanuelle Bercot

Avante com a vida!



Corria o ano de 2001 quando Emmanuelle Bercot encarnou na tela o papel de Marion em “Clément”, acumulando essa interpretação com a função de realizadora. Ainda que tal não fosse a sua primeira experiência de direção (a sua estreia remonta a 1999 com “It All Starts Today”) “Clément” tornou Bercot como uma nova promessa do cinema francês.

Treze anos e cinco filmes depois, a atriz e realizadora oferece-nos “Ela Está de Partida”, um filme que tem como principal protagonista a eternamente bela Catherine Deneuve que assume o papel de Bettie, uma sexagenária proprietária de um restaurante e ex-Miss Bretanha, à beira da falência financeira e emocional.

Filme que integrou a seleção oficial do Festival de Berlim, obteve nomeações para Melhor Atriz e Melhor Ator Revelação nos Prémio César assim como para Melhor Filme no Festival Loius Delluc, “Ela está de Partida” é uma espécie de road-movie no feminino, versão Thelma sem Louise, envolto de uma toada trágico-cómica e repleto de personagens em busca de redenção e de reconciliação familiar e afetiva, ainda que não o admitam.

Bercot pensou “Ela Está de Partida” tendo em conta Bettie e a personagem encarnada por Deneuve consegue ser o centro das atenções – dentro de um elenco que acolhe alguns amadores e não-atores – de uma forma suave e gentil que apenas é possível depois de décadas à frente de uma câmara. E é essa mulher, que a vida deixou marcas profundas no coração, que se encontra numa encruzilhada emocional.

Um dia, Bettie sabe através da sua mãe, que o Homem que ama a abandonou. Desta relação complicada (Bettie é, era, amante do marido da mulher que era amante do seu marido) resultam mais desilusões, frustrações, antigos medos. Ainda que viva confortavelmente em casa de sua mãe, no andar de cima do restaurante das duas, Bettie reabre feridas. Estranhamente, ou não, o seu único consolo são os cigarros, vício que tinha interrompido.

Os laços familiares desta mulher que já foi Miss Bretanha, resumem-se à sua mãe pois a relação com a sua filha é um ato irremediavelmente falhado. A tristeza apodera-se de Bettie que de forma a escapar de um quotidiano que a estrangula, abandona o restaurante a meio de um dia e depois de um “já volto”, inicia a mais decisiva viagem da sua vida.

O início da mesma, a bordo do seu carro, é um dos momentos mais bonitos do filme ao qual não é de todo alheia a banda sonora que faz nesse momento brilhar a música de Rufus Wainwright. Bettie deixa tudo e todos, sem aviso e, metaforicamente, abandona a urbanidade embrenhando-se na bonita paisagem rural de França.

Para trás fica o restaurante, a mãe, o amante, a vida tal como ela era. O futuro é incerto, à base de um cigarro que teima em ser um consolo difícil de ser encontrado e apenas uma chamada telefónica da sua filha Muriel (bem interpretada pela cantora Camille) a leva a pensar numa nova rota. Charly (o excelente Nemo Schiffman), neto de Bettie e filho de Muriel, tem de ser entregue ao avô paterno pois a sua mãe sai em busca de emprego.

Os dados estão assim lançados e Bettie, que entretanto evita a tudo o custo reunir-se com as antigas Miss regionais de França de 1969 para participar na elaboração de um calendário, vê-se assim na companhia de um pequeno “estranho” que é o seu neto. É a partir do momento em que se juntam neto e avó que o filme de Bercot começa a ganhar consistência e um fio condutor pois até ai os minutos vão passando e ao espectador está reservado o papel de alguém que tenta juntar peças de um puzzle algo obtuso que busca, a espaços, fazer a dicotomia entre a juventude e a velhice e o choque geracional “triangular” entre Bettie, a sua mãe e filha.

Para trás ficam minutos que revelam uma personagem sem destino, propensa a encontros fugazes e que tem no ombro desconhecido a melhor forma de exorcizar fantasmas. Nesses momentos, a realizadora “ilude” o espetador com uma câmara que procura algum dinamismo a partir de uma subjetividade propositadamente “tosca” ou com a ajuda de grandes planos (excessivos?) que devassam a intimidade de Bettie ainda que é sempre um deleite olhar para um ecrã completamente preenchido pelo (ainda) doce semblante da “bela de dia”.

Felizmente que a segunda metade do filme consegue dar mais alguma chama a este filme e no final a sensação é de um confortável dever cumprido por parte de Emanuelle Bercot mas ainda assim um pouco tirado a ferros tal como a esperança e a felicidade finalmente conseguida por alguns dos personagens.

In Rua de Baixo

terça-feira, 20 de maio de 2014

“O Olhar de Sophie”
de Jojo Moyes

Retrato para a eternidade



Estamos em 1916. A Europa está a ferro e fogo e a Primeira Guerra Mundial está ao rubro. Em Somme, uma pequena cidade francesa, Sophie Lefevre sonha com o seu marido Édouard, um pintor impressionista que partiu para a frente para combater o inimigo alemão.

De forma a vasculhar as maravilhas de uma memória envolta de momentos especiais, Sophie tem por hábito contemplar o seu retrato, pintado pelo marido. A ausência de quem se ama deixa profundas marcas num coração que sofre com a ausência e que as saudades dilacera.

Quando os alemães chegam a Somme, o comandante local revela um particular interesse por Sophie que é, agor,a uma mulher disposta a tudo: a arriscar perder entes queridos, a sua autoestima e até mesmo a própria vida, para recuperar o amor da sua vida.

Décadas depois, o retrato de Sophie chega a Londres e às mãos de Liv Halston, que tem nessa obra de arte a única recordação da memória do seu marido que morreu de forma prematura. Mas a vida traz mais desilusões. Liv é confrontada com a eventual perda do quadro, pois o mesmo está a ser reclamado pelos herdeiros e a sua única esperança é Paul, o homem que conseguiu tornar a vida de Liv novamente apaixonante e quetem agora a missão de investigar o seu paradeiro.

É desta forma que podemos traçar o perfil do novo livro da londrina Jojo Moyes. “O Olhar de Sophie” (Porto Editora, 2014) narra a vida de duas mulheres que, apesar de viverem em dois períodos muito diferentes da história, têm em comum uma luta particular – que tem no epicentro a pintura de Sophie – e revelam uma personalidade forte, obstinada e independente, ainda que salpicada por traços de uma fragilidade latente.

Outra das questões que as duas mulheres têm em comum é a pressão a que estão sujeitas, o que as torna em alvos fáceis de crítica por parte quem as rodeia. Neste capítulo, Moyes consegue fazer um interessante diálogo em forma de espelho entre os personagens, apesar das diferentes temáticas abordadas; enquanto Sophie é obrigada e lutar pelo presente e futuro, Liv tem no passado o maior inimigo.

Através de uma abordagem contemporânea, Moyes, por exemplo, confere à personagem de Liv um particular interesse neste livro, pois ao tornar-se viúva de forma muito precoce sente a dor da perda de forma injusta e galopante. É nesse contexto que o quadro de Sophie se torna numa peça fulcral para a sua existência, assumindo-se como o único laço que resta da sua ligação com o falecido marido.

Daí que toda a sua luta seja legitima, justa, clara e óbvia e a escritora, que já venceu o prémio Romantic Novel of the Year por duas vezes – e que editou entre nós livros como “A Baía do Desejo” ou “Viver Depois de Ti” -, consegue trabalhar o personagem de uma forma convincente, competente e apaixonada. Jojo Moyes tem o mérito de humanizar Liv e, ao leitor, é inato o sentimento de identificação com um personagem de corpo inteiro que se encontra (quase) sozinha num perigoso labirinto emocional.

Já com Sophei, Moyes resgata uma excelente dinâmica que tem como palco uma pequena cidade sitiada pelo inimigo. Também aqui a sobrevivência está em jogo, até de forma mais intensa. As emoções desfilam em carne viva através das linhas deste livro e Sophie dispensa a lógica e a ética com o fim de conseguir o seu objetivo.

No fundo, Sophie e Liv lutam por amor e a ligação emocional entre personagens e leitor é inevitável e muito bem recebida. Para isso muito contribui o talento da escrita de Jojo Moyes, que sabe captar a atenção de forma sagaz e eficiente o que torna este romance numa muito agradável surpresa.

Os personagens são credíveis, reais, muito bem desenvolvidos e a escrita simples e direta torna “O Olhar de Sophie” num livro altamente recomendável. Se ainda não conhecida a obra desta autora britânica, eis um bom ponto de partida.

In Rua de Baixo

segunda-feira, 19 de maio de 2014

Susana Nobre em entrevista

“Os RVCC resolviam, ou ajudavam a resolver, um problema administrativo que advém da obrigatoriedade de ter o 9ª ano de escolaridade para ter acesso a uma grande parte dos empregos. Não há neste momento nenhuma resposta tão eficaz como foi o caso dos RVCC” 



País de brandos costumes e de gente trabalhadora, Portugal procura sair da crise económica e pessoal. Através do documentário “Vida Activa” Susana Nobre traça o perfil orgulhoso de gente que não desiste mas sente-se encurralada numa conjuntura que transforma a existência numa vivência interrompida. O desemprego, a precaridade e a requalificação estão na base dos testemunhos que compõem o fio condutor desta brilhante experiência cinematográfica. Para a devida contextualização deste projeto estivemos à conversa com Susana Nobre

RDB – Como surgiu a ideia de fazer um filme deste género? 

Susana Nobre – Partiu do conhecimento prévio das metodologias dos processos de Reconhecimento e Validação e Certificação de Competências (RVCC). Estas metodologias implicavam a enunciação da história de vida a partir de instrumentos formais. Interessava-me ver como a história de vida particular, na sua enunciação, resistia a um processo institucional e formatado como era o RVCC.

RDB – A conjuntura social e económica em Portugal tende a tecer uma diferença cada vez maior entre o desempregado e quem tem emprego. Até que ponto acha que programas como o RVCC podem estimular quem se encontra inscrito num centro de emprego? 

SN – Os RVCC resolviam, ou ajudavam a resolver, um problema administrativo que advém da obrigatoriedade de ter o 9ª ano de escolaridade para ter acesso a uma grande parte dos empregos. Não há neste momento nenhuma resposta tão eficaz como foi o caso dos RVCC. Nesse sentido, estimulam porque regulam o acesso. Podemos questionar essa formatação do mercado de trabalho para o 9º ano. Foi ela que tornou premente a criação destes processos que têm uma lógica integradora e não de exclusão. No caso português fazia todo o sentido, pois temos uma população pouco qualificada do ponto de vista académico e com percursos profissionais muito determinados e desenvolvidos pela experiência de vida.

RDB – Das muitas entrevistas que realizou como se processou a escolha daquelas que figuram em “Vida Activa”? Obedeceu a algum critério predefinido?

SN – Penso que talvez haja um traço comum que é o extravasar para além do guião técnico e das respostas formatadas. Era muito frequente os candidatos terem um discurso orientado para o pressuposto do que deveria ser correto responder. Isto tem a ver com uma dimensão opressiva que as instituições produzem, ou podem produzir, no confronto com elas. Também é dessa tensão entre o indivíduo e a sua história particular e a instituição, que a todos obriga e a todos trata por igual, que o filme vive.

RDB – Dos rostos que se dão a conhecer no documentário é notória uma certa sensação de tranquilidade dando a entender que a câmara não intimidava. Como se realizava o processo de filmagem?

SN – A câmara não intimidava mas penso que o guião técnico das entrevistas sim. O filme pode ser estruturado em dois momentos: um primeiro momento de seriação de entrevistas, conduzidas pelo guião técnico de entrevista, e um segundo momento em que intervenho mais, ao procurar outras questões que já não faziam parte dos instrumentos do RVCC. Esta segunda parte decorre principalmente em sessões de grupo onde já havia uma relação estabelecida com os protagonistas.

RDB – Invariavelmente os testemunhos refletem vidas que estão de certa forma interrompidas. Ainda assim, o orgulho é um dos sentimentos mais presentes no discurso dos entrevistados. Entende esse orgulho como uma reação face às adversidades vividas por estas pessoas?

SN – Talvez seja um orgulho pela lucidez, pelo conhecimento do lugar em que se está. Mas há diferentes tipos de orgulho. Há o brio profissional de se ter cumprido as tarefas propostas, mas também o orgulho pelo conhecimento construído. O conhecimento profissional construído ao longo dos anos funciona como uma catedral que permite assumir com segurança uma perspetiva crítica sobre o lugar em que se está. No caso do filme isto é bastante evidente nos relatos masculinos.

RDB – Ao longo do filme somos presenteados com inúmero material fotográfico que serve de contextualização ideal. Foi difícil obter esse material?

SN – Esses materiais faziam parte dos portefólios que os candidatos tinham de construir ao longo do processo. Uma das funções que tinha, era dar orientação na construção dos mesmos.

RBD – Tendo em conta a sua experiência na génese de “Vida Activa”, como definiria o perfil do português? Será que o facto de se registar uma elevada taxa de desemprego e uma situação laboral precária pode tornar-nos num povo definitivamente depressivo?

SN – Não sei se é uma característica do povo português, penso que não, mas está muito enraizada a ideia de que a dignificação pessoal só advém do trabalho enquanto emprego. Quando esse lugar deixa de existir, instala-se uma crise de participação que desvincula politicamente as pessoas do mundo à sua volta.

RDB – Ainda que falemos em termos documentais, sentimos que “Vida Activa” tende a centrar-se no depoimento evitando sempre qualquer tipo de julgamento. Nunca sentiu a tentação de deixar cair a cortina da imparcialidade?

SN – A subjetividade não se dá apenas em comentários na primeira pessoa. A estrutura do filme não é imparcial. Há uma montagem de problemas que tem uma orientação muita clara. A cena final é disso emblemática. A destruição dos papéis ressoa por todo o filme, como o facilitismo dominante em destruir o que levou anos a construir. Não se trata da destruição da memória pessoal mas sim de estruturas produtivas irreparáveis.

RDB – De que forma motivaria o espetador a ver o seu documentário?

SN – O ato de ver um filme em sala transforma o filme numa experiência, o que nem sempre acontece numa televisão ou num computador.

In Rua de Baixo

quarta-feira, 14 de maio de 2014

“Private: Principal suspeito”
James Patterson

Claquete, páginas, ação!



“Alex Cross”, “O Clube das Investigadoras”, “Michael Bannett”, “Private”. Eis algumas das séries que têm em comum a pena de James Patterson, com ou sem ajuda de terceiros.

São incontáveis os sucessos, entendam-se bestsellers, deste norte-americano que já vendeu milhões de livros em todo o mundo. O seu nome, a sua marca, são sinónimos de policiais onde a ação supera o suspense e a dinâmica presente nas páginas afasta qualquer (mau) presságio de monotonia.

E é esse o sentimento que assola “Private: Principal Suspeito” (Topseller, 2014), um livro que se lê num abrir e fechar de olhos, com a sua rápida cadência a fazer lembrar os filmes de ação made in Hollyood e revelando-se com um verdadeiro vício para o leitor.

Como a mais eficiente agência de investigação privada em todo o Mundo, a “Private” tem ao seu leme Jack Morgan, um antigo fuzileiro que herdou o “negócio” do seu pai pouco tempo antes de este ser assassinado. Para além da empresa, Jack recebera do pai um incentivo de 15 milhões de dólares.

Empresário muito bem-sucedido e invejado pela polícia local, Jack Morgan vê-se agora envolvido numa situação que pode mudar a sua vida para sempre. Ao regressar de uma viagem à Europa, chega a casa e encontra Colleen, sua ex-namorada e assistente, morta na cama. Entretanto, uma carrinha carregada com medicamentos ilegais no valor de 30 milhões de dólares é assaltada e, numa conhecida cadeia de hotéis locais, um empresário é morto.

A confusão insta-se na vida de Jack Morgan e, pela primeira vez, é o principal suspeito de um crime que apenas ele próprio pode provar que não cometeu. A arma do crime é sua, os alibis fracos. A ajuda dos sobredotados técnicos da Private pode, desta vez, não ser suficiente para fazer-se justiça.

Para além do seu drama pessoal, Jack vê-se obrigado a colaborar com a Máfia – pois não se quebra um pacto com um homem como Carmine Noccia -, a recuperar os referidos medicamentos roubados e a ajudar a bela e desesperada Jinx Poole, dona de uma cadeia hoteleira à beira da falência devido aos assassinatos que têm ocorrido nas suas unidades.

Ao longo das páginas deste livro, escrito entre Patterson e Maxine Paetro (autora que já participou em alguns tomos desta série bem como em “O Clube das Investigadoras”), embalamos numa aventura frenética, repleta de jogos e investigações policiais, ficando ainda a conhecer mais da vida pessoal de Jack Morgan, um personagem deveras humano, através de uma contextualização muito bem elaborada pela dupla de autores que consegue, também, entrelaçar tramas bem delineados e recheados de pormenores que tornam “Private: Principal Suspeito” num dos melhores livros da saga.

In Rua de Baixo

sexta-feira, 9 de maio de 2014

The Afghan Whigs - “To do the Beast”

O regresso do senhor Dulli



Logo nas primeiras linhas cantadas de “Parked Outside”, primeira faixa de “To do the beast”, o primeiro disco dos norte-americanos The Afghan Whigs desde 1998, Greg Dulli afirma: “If they've seen it all show them something new”.

Mas o que terão Dulli e os seus The Afghan Whigs de novo para nos oferecer? O grunge dos anos 1990 já foi chão que deu uvas, a banda apenas tem como membros originais o seu grande mentor e o baixista John Curley, e uma das maiores referências das cordas elétricas da banda, Ricky McCollum, não esteve ativamente presente nas gravações de “To do the beast”, apesar de ter participado na reunião que a banda promoveu há cerca de dois anos.

Para além disso, Dulli aproveitou o hiato criativo da sua banda de sempre para investir em projetos paralelos, como os muitíssimos interessantes Gutter Twins e Twilight Singers. Razões mais do que suficientes, portanto, para receber o sucessor de “1965” ainda com maior ansiedade.

E as primeiras impressões de “Do to the Beast” são, acreditem, muito positivas. Dulli continua um renegado com capa rock and rool, um narrador obsessivo, instável (entenda-se, neste contexto, como um fator positivo) e com instintos deliciosamente ásperos. O autor de temas como “Debonair” e “Gentlemen” (não é de forma aleatória que referimos temas do álbum “Gentlemen”, um dos melhores da década de 1990) continua a revelar tiques de um assassino que justifica os crimes com a sua paixão.

Mas não há nada melhor do que continuar em frente, de forma a honrar um passado musical que, lamentavelmente, se viu interrompido por questões diversas durante mais de década e meia. Hoje, no ano de 2014, não se pode pedir um arrojo semelhante ao que se colava a discos como, por exemplo, “Big top Halloween” e “Congregation”. Ou pode?

Empurrados pela boa imagem que causou a reunião da banda em 2012, Dulli e Curley convidaram músicos como Dave Rosser, Jon Skibic ou Mark Mcguire e atacaram “To do the Beast”. O resultado é um disco muito interessante, que junta a face mais agressiva dos The Afghan Whigs com uma sonoridade mais contemplativa e soul, que resulta da experiência do vocalista e guitarrista nos já referidos projetos Gutter Twins e Twilight Singers.

Existe como que um sentimento de montanha-russa musical ao ouvir “To do the Beast”. Temas mais agressivos, onde as guitarras afiam garras, são intercalados com momentos mais intimistas, com Greg Dulli a chegar à performance em falsete, ao som de piano. Se logo nas duas primeiras composições, “Parked Outside” e Matamoros”, o ambiente é claramente rock, com a música a serpentear entre guitarras, baixo e uma voz quente e familiar, “It Kills”, por exemplo, começa com acordes de piano, que paulatinamente vão permitindo a entrada dos restantes companheiros de luta sonora, que sabem estar e respeitar o espaço de cada qual.

Assim, em “It Kills”, Dulli presenteia os nossos ouvidos com uma variedade vocal, que vai do sussurro arranhado ao grito no já referido registo falsete, que a ambiência temporariamente acústica desta canção permite encaixar que nem uma luva. Esse sentimento mais contido e com a eletricidade trocada pela claridade acústica – interrompida aqui e ali por um solo elétrico - mantém-se em “Algiers”, uma canção que leva Dulli a aproximar-se ao mestre David Bowie.

Depois, “Lost in Woods”, um dos momentos mais dramáticos do disco, devido à cadência negra e dolente do piano, faz crescer a certeza de que, contrariamente ao que seria suposto pensar, são estes momentos menos associados à sonoridade característica dos The Afghan Whigs que tornam “To do the Beast” numa experiência muito pertinente. Essa ideia habita também no espectro de “Can Rova”, peça musical que lembra, a espaços, a atmosfera mais calma de alguns discos dos Pearl Jam, mas que tem no ADN da voz de Dulli a sua mais importante marca distintiva.

Para agitar as almas, “To do the Beast” tem momentos como a acutilante “Lottery”, uma das faixas mais viciantes deste disco, cheia de instinto radio friendly e onde as guitarras soltam amarras. Outro dos momentos altos do álbum é “Royal Cream”, uma canção que faz o exorcismo de alguns fantasmas e que conjuga como nunca a harmonia entre voz, guitarras, baixo e bateria.

Perto do final de “To do the Beast”, “I am Fire” resgata um sentimento redentor em toada contida, enquanto “These Sticks” é um curto e delicioso tour de force repleto de guitarras planantes e de uma bateria em ritmo tribal que, na companhia de alguns metais, convidam-nos a entrar num ritual “privado”, onde o mestre de cerimónia, Greg Dulli, alerta: “Tie these stakes around my heart, be here when it blows apart."

Feitas as contas, “To do the Beast”, não sendo um típico disco dos antigos The Afghan Whigs, é um delicioso exercício musical que não vai desiludir os acérrimos fãs da banda nem os mais recentes seguidores de Dulli a solo. Aquilo que podemos desejar é que não sejam precisos mais 16 anos para ouvirmos outro disco da banda natural de Ohio, pois os nossos ouvidos merecem mais novidades do senhor Dulli e seus comparsas.

Alinhamento:

1.Parked Outside
2.Matamoros
3.It Kills
4.Algiers
5.Lost in the Woods
6.The Lottery
7.Can Rova
8.Royal Cream
9.I Am Fire
10.These Sticks

Classificação do Palco: 7 / 10

In Palco Principal

quarta-feira, 7 de maio de 2014

“Vida Activa”
de Susana Nobre

A existência em suspenso



A revitalização social é uma das tarefas de um Estado que em tempos de assumiu de providência. Nas últimas quatro décadas, que tem no seu início a fronteira política, económica e social que foi desenhada com o 25 de abril de 1974, Portugal modificou o seu perfil.

Depois de alguma insistência lográmos entrar na Comunidade Económica Europeia e o futuro adivinhava-se risonho. Uns diziam que estávamos no “comboio da frente” da Europa, outros entendiam essa metáfora como um adiar de uma eventual perda de soberania e independência financeira face a países europeus de outras valias.

Entretanto, os fundos europeus chegavam para (quase) tudo. O país apostava tudo na sua revitalização, a informática entrava em força mas aquilo que os bites e bytes não conseguiam prever era o descalabro que se assistiria com o decorrer do século XXI. Ousava-se sonhar com novos aeroportos e linhas férreas de alta velocidade. Mais uma vez, o sonho tendia a ser mais rápido que a realidade que seguia em velocidade de um cruzeiro à deriva. A crise chegaria pouco depois. Mais uma vez aos portugueses pedia-se para apertar os cintos.

Numa situação onde a concorrência interpessoal passou a ser determinante no que toca à afirmação profissional e até pessoal, o governo português, através do Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP), criou em 2001 um programa que viria a ser conhecido como Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências (RVCC), que tinha por fim fazer crescer o nível de qualificação e empregabilidade de adultos ativos, afirmar a importância da formação contínua e valorizar as aprendizagens adquiridas ao longa da vida.

Mais tarde, os Centros RVCC seriam alvo de restruturação e passariam a designar-se por Centros de Novas Oportunidades. Nesses locais, chegavam candidatos que visavam cursos de formação de adultos. Estavam sujeitos a uma entrevista, realizam testes escritos de forma a serem identificadas as suas “competências” em termos de escolaridade e depois formavam grupos que frequentam uma série de sessões.

Esse novo regresso à “escola” assumia-se sob a forma de várias disciplinas entre as quais se destacava “Histórias de Vida”, um espaço que levava o aluno a realizar um dossier narrativo da sua vida, uma espécie de portefólio que superava em emoção e pertinência qualquer exercício matemático ou redação. No final da ação, os alunos recebiam certificados que numa primeira fase equivaliam ao 9º ano de escolaridade e, a partir de 2007, ao 12º ano.

Com o objetivo de realizar um filme sobre esta temática, Susana Nobre começou em 2006 a frequentar Centros de Novas Oportunidades na Zona da Grande Lisboa, região bastante afetada pelo desemprego. Dessa envolvência surgiu a possibilidade de integrar a equipa do Centro de Novas Oportunidades do Centro de Formação Profissional de Alverca assumindo o papel de profissional de reconhecimento de competências.

A realizadora que na altura contava já com a autoria de filmes como “As nadadoras” e “O Que pode um rosto”, conseguia assim uma forma privilegiada de fazer um filme documental sobre uma complexa realidade. Depois de muitas horas a filmar episódios quotidianos da sua atividade, Susana Nobre chegaria a “Vida Activa”, um extraordinário exercício documental que simboliza a epifania de milhares de vidas que, invariavelmente, tiveram, quase todas, por fim o desemprego por triste sina.

Ao longo de 90 minutos somos transportados para realidades nuas e cruas, sem rede, de pessoas que sentem a vida interrompida depois de dezenas de anos no mercado de trabalho. Muitas delas saíram de casas dos pais com 11, 12 e 13 anos para começar uma nova vida e ganhar o pão que faltava junto dos seus.

Em “Vida Activa” as estrelas, sem as devidas aspas e com a nossa maior vénia, são as pessoas que aceitaram dar a cara, que possibilitaram um processo de certa forma voyeurista e completamente transparente.

Ao longo do documentário, são muitos os sentimentos que nos assolam. Há tristeza, incompreensão, raiva e até quase uma sensação de rendição, mas estas pessoas não deixam de lutar, exultando a capacidade de sacrifício, o orgulho das tarefas que exercem ou exerciam e uma humildade e simpatia comoventes. A tensão está presente nos seus rostos, nas suas mãos, nos seus olhos.

Longe do propósito biográfico, Susana Nobre, construiu um complexo quebra-cabeças documental cuja montagem não tende a seguir um fio condutor, um guião, mas que no seu conjunto tende a ser coerente, verdadeiro, pois, no fundo, estamos perante histórias de vida de gente que integra o povo que quer trabalhar, uma classe que deixou de ser operária mas que não perdeu o orgulho das suas raízes.

Sempre com a devida autorização da pessoa filmada, Susana Nobre mostra entrevistas, momentos das sessões de formação, relatos diversos que atingem a dimensão de um “diário existencial” que tem o auge nos já referidos dossiers elaborados na disciplina “História de Vida”. O arquivo de imagens em “Vida Activa” é outra das formas de contextualização brilhante presentes neste documentário que tem o mérito de tentar entender a crise que hoje assola este país sob as perspetivas de quem é despedido mas também de quem se vê na obrigação de despedir.

Espelho de um país cinzento, “Vida Activa” é um documentário autêntico que não se coíbe de ser duro, direto e cru quando tem de o ser mas que consegue resgatar momentos onde a esperança supera o estado moribundo e depressivo de gente que sofre na pele a ingerência de outros.

Portugal mudou nas últimas décadas. A situação de pleno emprego dificilmente voltará e hoje trabalha-se a prazo, curto. Ter emprego passou a ser um privilégio e o despedimento tornou-se na solução “óbvia”. Alguém à beira da reforma causa “inveja” por ter conseguido um percurso laboral que hoje é quase uma utopia. A emigração cresceu, o desemprego também ainda que se tente mascarar esse facto com as sucessivas chamadas por parte do IEFP aos desempregados inscritos nos Centros de (des)Emprego perante cursos “Vida Ativa”.

É este o país que, por hora, temos e é o seu reflexo que Susana Nobre transmite de forma exemplar em “Vida Activa”, documentário que esteve patente no festival DocLisboa e chega esta semana à sala do Cinema City Alvalade. Porque a melhor ficção cinematográfica é a própria realidade.

In Rua de Baixo

segunda-feira, 5 de maio de 2014

“Do Branco ao Negro”
Vários Autores

A vida a várias cores



Uma dúzia de contos, doze formas de encarar a vida através de várias tonalidades que servem de um particular arco-íris da existência.

“Do Branco ao Negro” (Sextante Editora, 2014) é um libertador, belo e acutilante livro que nasceu da colaboração de algumas das mais interessantes vozes literárias nacionais no feminino, que resulta num exercício que retrata o amor, incondicional ou não, através de um filtro colorido espelhado em palavras e ilustrações que vagueiam num oceano que acolhe vagas que misturam tranquilidade e agitação, sons e silêncios, partidas e despedidas, memórias e tempos presentes e futuros.

Rematadas com apontamentos ilustrados de Rita Roquette de Vasconcellos, as estórias de “Do Branco ao Negro” refletem também a mestria narrativa de algumas das grandes senhoras da escrita portuguesa.
O livro começa com a cor branca e as palavras nascem do raciocínio de Ana Luísa Amaral. Aqui o branco é luto, é perda, é consolo de uma relação à beira do fim entre o ser humano e o animal, sendo também conforto e amizade. A seguir, Ana Zanatti fala de uma abóbora-menina, ou vice-versa, atrações de intuições metafóricas num cenário amarelo.

Depois, Clara Ferreira Alves revela uma relação egoísta vivida entre Portugal, a Turquia e o mais distante Uzbequistão. A desilusão pode ter varias cores mas o laranja pode ser sinónimo de ridículo. Por sua vez, Elgga Moreira traça segmentos de uma fuga em tons vermelhos e com um discurso em forma de desconversa onírica.

Lídia Jorge é a senhora que se segue e é de sua autoria um dos mais interessantes momentos deste livro. A mudez tem a cor esverdeada de forma suave. Ainda sob um cenário esverdeado, ainda que mais denso, Maria Isabel Barrento fala de uma esperança fugidia, de uma vida que cresce e passa num abrir e fechar de olhos.

Mas também há espaço para momentos mais quentes e o erotismo aracnídeo de uma Raquel em tons marinhos traz à tona o discurso sempre forte de Maria Teresa Horta. Explorando também a cor azul, Raquel Freire contribui com uma narrativa em forma de busca desesperada assente numa visão desfocada e paranoica.

Já perto do final mais três estórias. Rita Roquette de Vasconcellos, agora a fazer uso da palavra escrita, descreve a aventura urbana da geometria do pensamento violeta, enquanto S. José Almeida usa o roxo como sinónimo saudosista. O último capítulo surge da pena de Yvette K. Centeno e em toadas escuras fala-se das não-coincidências da sombra.

Com os direitos autorais a reverterem exclusivamente para a Alzheimer Portugal, “Do Branco ao Negro” une, numa mesma história, diversos capítulos de gente comum em forma de contos cujo perfil revela excelência e elegância.

In Rua de Baixo