quarta-feira, 30 de abril de 2014

“Joe”
de David Gordon Green

Anatomia de uma alma torturada



A vida pode revelar-se como uma estrada de sentido único com algumas bifurcações. São as escolhas, as opções tomadas em determinados momentos, que podem revelar-se certeiras ou dar origem a pequenos redemoinhos anárquicos.

É nessa ténue linha que divide a racionalidade do caos que vivem as personagens de “Joe”, o mais recente filme de David Gordon Green, que traz um Nicolas Cage como há muito que não o víamos, como um personagem inteiro, de corpo de alma, interpretação que lhe valeu – bem como ao restante elenco e realização – excelentes críticas nos Festivais de Veneza e de Toronto.

“Joe” assume-se mesmo como uma aposta ganha para realizador e ator principal e, esperemos, um ponto de viragem em carreiras que começaram em terrenos mais indie mas que, paulatinamente, conduziram Green e Cage para experiências menos conseguida e a roçar a banalidade cinematográfica, salvo raras exceções.

Tendo como base narrativa a adaptação de Gary Hawkins face à obra literária de Larry Brown, “Joe” relata a vida de Joe Ransom, um ex-condenado que aos 48 anos tenta fazer a redenção de uma vida à beira do limite, abraçando a liderança de um grupo de homens cujo trabalho centra-se no envenenamento de árvores que mais tarde serão abatidas por uma empresa madeireira.
 
A ação situa-se algures no Estado do Texas, terra que está longe da máxima que os Estados Unidos da América tanto proclamam. Aqui, a esperança é pouca e a liberdade é desafiada pela crescente miséria, económica e humana.

Numa das suas visitas à cidade, Joe vê uma família que procura alimentos vasculhando o lixo. Um homem, uma mulher, dois filhos. Ele alcoólico, ela perdida dentro de uma disfuncionalidade latente. Os mais novos sobrevivem como podem. Gary (Tye Sheridan) é um rapaz de 15 anos sem medo do que a vida possa representar e que jurou fidelidade à sua irmã, emudecida pela vida, e mãe. Wade (Gary Poulter), seu pai, é o protótipo de alguém em fim da linha. Violento e constantemente sob o efeito do álcool, tenta retirar o máximo possível do alheio nem que tal signifique violentar (física e psicologicamente) ou roubar a própria família.

Enquanto Joe luta contra os seus fantasmas e enfrenta mais uma dura jornada, Gary surge na sua vida. O jovem procura trabalho, Joe precisa de ajuda. Ainda que nada o pudesse fazer prever é o início de uma fortíssima ligação que vai unir as vidas destas duas pessoas que têm em comum um dilacerante e profundo estado de solidão e em constante rota de colisão.

E é mesmo a solidão que David Green mais trabalha em “Joe”. A câmara filma pessoas simples, de forma competente, e oscila tal como a vida dos personagens, umas vezes mais agitadas outras completamente ensimesmadas. A raiva com que Gary e camaradas de luta batem nas árvores, por forma a envenenar a sua seiva, é sinónimo dos murros que a vida pode presentear as almas mais incautas.

Fora do âmbito metafórico, Green filma a violência de forma gratuita, seca, pungente, pois os seus personagens assim o necessitam. A brutalidade é para estes homens uma forma legitima de atingir um fim. A dor torna-os mais fortes, a cada dia. A vida é um caos mais eles têm de a superar, vencer.

Por sua vez, a disfuncionalidade familiar não está apenas presente debaixo do teto de Gary. Também Joe não assume qualquer relação “palpável”, para além das constantes visitas ao bordel local, e remete toda a sua paixão para a sua cadela de estimação, mas tal não quer dizer que Joe não tenha amor para dar.

A sua bondade, e dignidade, leva-o a acolher em sua casa, Connie (Adriene Mishler), uma jovem que tenta refúgio depois de ser molestada pelo amante da sua mãe e que deseja ser a companheira de Joe nem que seja enquanto este finge que dorme. Como que pratos de uma desequilibrada balança afetiva, Gary e Connie completam um triângulo que tem em Joe a figura central. Green filma os laços emocionais deste trio como uma corrente que prende a alma num local profundo onde a luz (esperança) tarda em aparecer.

Para além dos seus fantasmas interiores, Joe e Gary têm de lutar contra a maldade e mesquinhez alheia. Se Gary tem na figura do pai a sua própria ideia de diabolização, para Joe a instabilidade assume a figura de Willie (Ronnie Gene Blevins) um vingativo “camarada” de bar que está sedento de vingança face à humilhação que Joe o sujeitou numa luta à base de muito álcool.

Tanto Wade como Willie são personagens cujo código genético tem como base a miserabilidade, uma soberba cobarde em desafiar o mais fraco sentindo-se, apenas e só dessa forma, respeitado e “humano”. Não é de todo inocente que David Green construa uma doentia relação entre Wade e Willie de forma a adensar uma existência movida a ódio.

A narrativa trágica deste poderoso filme revela-nos momentos de uma cumplicidade a toda à prova e muito do seu sucesso está na relação entre Gary e Joe, assim como no realismo de personagens como Wade, interpretado por um não-ator pois Gary Poulter não era mais nem menos que um sem-abrigo achado por Green numa rua dos Estados Unidos. Lamentavelmente, o regresso de Poulter à mendicidade levaria à sua morte, meses depois de terminadas as filmagens.
Ainda que camuflada, existe uma mensagem de esperança em “Joe”. O forte sentimento que une Gary e Joe, principalmente nas cenas em que os personagens procuram a cadela (de seu nome “Cão”) ou que Joe oferece a velha carrinha ao seu protegido, um prémio decrépito que pode funcionar como o maior dos troféus.
Na busca de tentar perceber como somos, realmente, a existência pode, de forma mais ou menos inesperada, mostrar-nos um reflexo de alguém que nunca pensámos ser. “Joe” funciona também como um exercício espelhado, como um percurso sem princípio, meio ou fim. Se, em alguns casos, condenar uma árvore à sua morte pode ser encarado como um início, uma segunda oportunidade, o mesmo pode suceder quando se ajuda outra a crescer.

“Joe” não é um filme fácil, mas David Green, Nicolas Cage e Tye Sheridan formam uma divina trindade dentro de um universo desesperançado. Longe de procurar uma ideia de futuro, “Joe” é, acima de tudo, uma ode ao presente, cru, nu e sem rede.

In Rua de Baixo

sexta-feira, 25 de abril de 2014

“Capitãs de Abril”
de Ana Sofia Fonseca

A revolução no feminino



Dina, Ana, Natércia, Teresa, Gabriela, Aura, Custódia, Celeste, Isabel. Os nomes, comuns, pouco dizem mas, se associados aos apelidos, ganhos através do matrimónio, assumem-se particularmente familiares.
De Otelo, Dina ganhou o Carvalho, Natércia passou a Salgueiro Maia, Aura acrescentou Costa Martins à sua graça, Gabriela passou a escrever Melo Antunes no final da sua assinatura, enquanto, entre outros exemplos, Teresa recebeu de Vítor o apelido Alves.

Diretamente ou através das coisas do destino, estas mulheres viveram o 25 de abril de 1974 de um lado particular da barricada. Através da sua dedicação, amor e companheirismo foram as traves mestras dos capitães que ousaram rebelar-se contra um regime que teimava em manter-se vertical mesmo depois de cair da cadeira.

Com “Capitãs de Abril” (A Esfera dos Livros, 2014) a jornalista Ana Sofia Fonseca regressa a um tema que havia explorado há cerca de uma década, quando trabalhava na entretanto extinta revista Grande Reportagem. O objetivo era dar voz a quem agiu na sombra, por solidariedade e paixão, num dos acontecimentos mais marcantes da história de Portugal. Este livro, em forma de reportagem, garante uma abordagem mais intrincada e a fundo das horas que antecederam e precederam a revolução dos cravos.

Com um percurso bastante pertinente no jornalismo em Portugal, tendo trabalhado em jornais de referência como o Público, Diário Económico e o Expresso, em revistas como a já referida Grande Reportagem e a Sábado, Ana Sofia Fonseca é hoje colaboradora da SIC e, em formato livro, já conta com títulos como “Angola, Terra Prometida”, “Barca Velha – Histórias de um vinho” ou o romance “Como Carne em Pedra Quente”.

No formato televisivo revela mestria no estilo reportagem, talento que já lhe valeu alguns galardões em Portugal e fora de portas, dos quais destacamos o prémio Gazeta assim como o troféu Direitos Humanos e Integração da UNESCO.

É também em ritmo de reportagem, através de uma escrita dinâmica e cativante, que “Capitãs de Abril” se revela um livro muitíssimo recomendável. Fruto de um trabalho de pesquisa incansável, Ana Sofia Fonseca relata-nos os momentos mais quentes do 25 de Abril de 1974 sob a perspetiva feminina, das companheiras dos militares que mudaram Portugal.

As últimas conversas entre esposas e capitães, os nervos e os medos do desconhecido, do que estava para chegar, a madrugada de ansiedade, a manhã de incerteza, as músicas na rádio, a vitória de um povo. Tudo isto se encontra deliciosamente retratado neste livro que faz uma contextualização de um Portugal ensimesmado, preso a um Estado desgastado.

Ao longo das páginas de “Capitãs de Abril”, Ana Sofia Fonseca enriqueceu a sua narrativa com imagens que resultam da pesquisa nos jornais da época, assim como da contribuição das protagonistas que gentilmente forneceram imagens do seu arquivo pessoal, das quais destacamos, por exemplo, o original do manifesto do “Movimento, as Forças Armadas e a Nação”, batido à máquina por Ana Coucello.

Tendo como base a coragem inata às mulheres que dão cara e alma a este autêntico tesouro em forma de reportagem, Ana Sofia Fonseca conseguiu um dos livros mais acutilantes sobre a revolução que por estes dias atinge os 40 anos, assumindo-se como um documento essencial no que toca à história recente de Portugal, pois a memória é o maior dos alentos da vida pessoal e coletiva de um país.

In Rua de Baixo

quinta-feira, 24 de abril de 2014

“A Lancheira”
de Ritesh Batra

A deliciosa degustação da esperança



Rapidamente o silêncio e o negrume da sala dão lugar ao agitado quotidiano da linha férrea de Bombaim, Índia. Os comboios sucedem-se, as vidas cruzam-se através das múltiplas linhas do meio de transporte mais utilizado no país. A confusão quotidiana marca a vida de milhões de indianos que saem diariamente de casa para o trabalho. A vida não para. A chuva adensa a azáfama.

Ila Vaid (Nimrat Kaur), dona de casa esmerada, prepara a filha para a escola. A rotina é constante. Num outro lugar da cidade, Saajan Fernandes (Irrfan Khan), um funcionário do departamento de reclamações de uma seguradora, sai em direção do trabalho. Ela, uma jovem casada, mãe. Ele, viúvo, à beira da reforma. O que os une? Nada, até ao dia em que um dabbawala (funcionário do eficaz sistema de entrega de lancheiras, reconhecido internacionalmente, inclusive pela família real inglesa) se engana e entrega a lancheira enviada por Ila ao ser marido mas cujo destino será a secretária de Saajan.

É desta forma que o “novato” Ritish Batra preenche os primeiros minutos de “A Lancheira”, um – bem a propósito – delicioso filme melancólico, que lhe valeu honras de estreia na Semana da Crítica da última edição do Festival de Cannes assim como a presença no Festival Internacional de Toronto de 2013.
Mais sob o espetro de Hollywood do que de acordo com a filosofia de Bollywood, “A Lancheira” é um exercício cinematográfico que recorda a formula de filmes como “Breve Encontro” de David Lean ou “A Loja da Esquina” de Ernst Lubitsch (ambos da década de 1940) e que são uma súmula de inocência e esperança.

A Bombaim de Batra é dinâmica, moderna, ainda que revele ainda evidentes traços naturalistas que a civilização indiana cultivou ao longo de séculos, assumindo-se como cenário ideal para um filme que tem um conceito de “comédia” fundido com o género melodramático onde o sentimentalismo não extravasa o bom senso.

Ainda que estejamos perante uma Índia versão 2.0, Batra diaboliza a comunicação da era moderna e opta por apostar no crescendo emocional entre Ila e Saajan através dos tradicionais papel e caneta, em forma de bilhetinhos trocados dentro da lancheira. Ao telemóvel fica associada a ideia de traição, de desprezo, e tal está amplamente explicito através do personagem de Rajiv, marido de Ila. Encaradas de forma romântica são também as entregas das lancheiras que começam por ser recolhidas de bicicleta, junto dos domicílios.

Em “A Lancheira”, a criação dos personagens principais foi feita meticulosamente e o seu quotidiano rejeita liminarmente os favores da tecnologia. Se Ila tenta prender a atenção do marido através de deliciosas refeições, feitas num velho e simples fogão, os dias de Saajan são envoltos em burocracias que rejeitam a presença informática. Simples como a amizade e o amor, a vida dispensa os favores da modernidade.

Aquilo que também preenche as vidas de Ila e Saajan, e lhes confere uma aproximação pessoal, é a frustração fomentada por uma sociedade ensimesmada, fechada sobre si mesma e que desconfia do que não conhece. Essa profunda descrença leva a acreditar que um país como o Butão seja o exemplo máximo da felicidade.

A solidão ganha o poder de conseguir apaixonar, platonicamente, duas pessoas que não se conhecem, que apenas trocam confidências que ganham consistência devido à reconfortante sensação do anonimato.

A realização simples, mas muito bem pensada, vai fazendo um intrincado jogo metafórico que permite adensar a união entre Ila e Saajan, que encontram pontes de apoio em duas personagens que os acompanham a partir de diferentes fases da película. No caso de Ila, é a voz da tia – sua vizinha de cima – e cuja comunicação é realizada com a ajuda de um cesto que sobe e desce pelas janelas ao sabor das necessidades de ambas, sendo que para Saajan se personifica em Shaikh (Nawazuddin Siddiqui), o seu pertenço substituto na empresa depois de se reformar.

Sem grandes alaridos e envoltos de uma assinalável sobriedade, os personagens de “A Lancheira” apenas recebem dos seus atores o necessário para ganharem consistência. Batra evitou exageros e a sua aposta revela-se acertada. Irrfan Khan, que vimos em “A Vida de Pi”, refugia-se num mutismo que é superado pela sua expressividade facial, nomeadamente quando lê as cartas de Ila. Khan, não necessita de palavras pois o seu semblante revela emoção, presença. Já Nimrat Kaur, mais conhecida pelo seu trabalho em palco, consegue dar, brilhantemente, vida a Ila através de um desempenho mais palpável, discursivo. Juntos, Khan e Kaur, forma uma dupla perfeita em “A Lancheira”.

No fundo, a estreia de Ritesh Batra no mundo do cinema vai para além de um vulgar filme romântico made in India. Em “A Lancheira” é feita a exploração das relações humanas que em muito se modificaram com as novas tecnologias. Longe de um espírito mais “fútil” de filmes como “Você tem uma Mensagem”, nesta obra de Batra explora-se, ainda que de forma subtil, a perspetivação da comunicação entre seres humanos sem a presença de telemóveis ou correios eletrónicos.

Através de um equilibrado balanço emocional, “A Lancheira” encanta o espetador com o recurso a um bom trabalho dos atores assim como a um conjunto de maravilhosos pormenores que vão prendendo, metaforicamente ou não, a atenção ao longo de cerca de 100 minutos. Batra consegue a proeza de conseguir partilhar emoções e uma história que sem a devida contextualização tende a cair no esquecimento. Falamos, claro está, das relações humanas e da sensação do inesperado como é a vida. Pois tal como Shaikh afirma: “por vezes o comboio errado deixa-nos na estação certa”.

In Rua de Baixo

quarta-feira, 23 de abril de 2014

“Dicionário de Insultos”
de Sérgio Luís de Carvalho

De bestial a besta…ou vice-versa



País de brandos costumes, Portugal, por vezes, exterioriza um pouco mais do que “só fumaça”. A mostarda chega ao nariz e lá vai disto, ó Evaristo! Como quem não sente não tem boa filiação, cada injúria infligida pode fazer funcionar um dos mais céleres mecanismos de defesa pessoal.

Falamos do insulto, seja como resposta ou achega. E, se insultar é uma arte, universal, nada melhor que conhecer as estranhas origens dos impropérios cá do burgo para ficar com mais armas neste duro combate.

Foi isso que fez Sérgio Luís de Carvalho com “Dicionário de Insultos” (Planeta, 2014), um livro que descreve a génese e a história adjacente a cerca de meio milhar de insultos que todos, ou quase todos os portugueses, conhecem. Existem para todos os gostos e “paladares”. Uns são mais corriqueiros, outros mais elegantes e existem ainda uns que, envoltos de complexos níveis de elaboração, se tornam quase impronunciáveis – entenda-se, neste contexto, de difícil entendimento por parte do insultado.

Em algumas entrevistas por forma a divulgar esta obra sui generis, Luís de Carvalho afirma, e bem, que «o insulto a usar depende do grau de chavascal». Falando bem e depressa, ao perder-se a elegância ganha-se em acutilância.

Tradicionalmente, o português achincalha desde a Idade Média, época em que as célebres Cantigas de Escárnio e Maldizer faziam as delícias dos mais “letrados”. Embebido de um divertido e sagaz espírito de investigação, Sérgio Luís de Carvalho acumulou e procurou sapiência na arte de chatear o próximo ao longo das últimas duas décadas até chegar a este “Dicionário de Insultos”, sinónimo de elemento aglutinador da origem de certo palavreado.

Licenciado em História, Sérgio Luís de Carvalho divide a vida entre o ensino e a investigação de âmbito histórico. Como autor já publicou mais de 30 obras que vão do género romance, passando pela literatura infantojuvenil até à pesquisa histórica. Agora é chegada a vez deste peculiar exercício literário que, segundo o autor, tem por fim defender a língua portuguesa, fazendo que a mesma seja devidamente utilizada.

Ora vejamos. Ao longo de mais de duas centenas de páginas, Luís de Carvalho apresenta-nos, alfabeticamente e em forma deliciosamente “romanceada”, cerca de 500 insultos que qualquer bom insultador, qualitativamente falando claro, deve dominar na ponta de língua. E nada como saber a sua origem para a sua devida utilização.

Sabia que “estafermo” deriva dos torneios medievais realizados em terras italianas? “Panhonha” tem a sua origem no idioma tupi (povo brasileiro que habitava no litoral do país no século XVI)? O termo “bera” é sinónimo de joia? Sim, estamos a ser muito brandos mas, para escrever como surgiu, por exemplo, o clássico “vai para o c…” tínhamos de ter bolinha no canto superior direito. Portanto, nada melhor que folhear este livro e descobrir algumas das mais fabulosas pérolas linguísticas do português enquanto arma de “achincalhanço”.

 In Rua de Baixo

“A Sétima Porta”
de Richard Zimler

O círculo dos esquisitos



A viver no Porto desde o início da década de 1990, o norte-americano Richard Zimler é um dos escritores mais apreciados pelos leitores portugueses. Com uma obra que se conta por uma dezena de romances, duas coletâneas de contos e um par de livros para gente pequena, Zimler traz-nos agora “A Sétima Porta” (Porto Editora, 2014 – nova edição), um livro apaixonante que nos transporta até à Alemanha da década de 1930, aquando da afirmação política e ideológica do nacional-socialismo.

Segundo o autor, esta obra foi consequência de um achado levado a cabo numa cave de Istambul, em 1990, que se revelaria em sete manuscritos do século XVI cujo autor foi o cabalista Berequias Zarco, uma das principais personagens do seu muito aclamado romance histórico “O Último Cabalista de Lisboa”.

Se um desses documentos tinha como tema central o pogrom de Lisboa – acontecimento também conhecido como o “Massacre de Lisboa de 1506”, um movimento popular que dizimou centenas de judeus por os considerar responsáveis pela peste que assolava o país, ato “patrocinado” pela Inquisição –, que Zimler utilizou como cenário do já referido romance, aos outros seis manuscritos estava destinado serviram de base para este “A Sétima Porta”.

Com a Berlim da década de 1930 como cenário, Sophie Riedesel é uma jovem cristã de catorze anos que vive no seio de uma família de classe média. O seu pai, um engenheiro comunista, luta pelos ideais marxistas e, nos tempos “livres”, partilha uma relação acomodada com a sua mulher e Hansi, o mais pequeno membro da família que se manifesta como uma “criança distante”.

Fã confessa de cinema e apaixonada pela pintura, Sophie desenvolveu uma forte relação de amizade com Raffi, antigo baby-sitter da família e apaixonado por egiptologia, e Rini, colega de turma e a sua melhor amiga. Coincidentemente, são ambos judeus. Tónio, alemão de gema, é outra das suas companhias favoritas e, desta proximidade, nasce uma relação mais densa e apaixonada.

Tudo corre normalmente até que o partido Nacional-Socialista chegar ao poder e, com isso, paulatinamente todas os ideais, certezas, princípios e sonhos acabam por desvanecer. O seu pai vê-se obrigado a aderir à causa nazi de forma a “salvar” a família, Hansi adensa a sua condição especial enquanto o seu autismo se torna cada vez mais evidente e a sua mãe é atingida pela doença.

Incompreensivelmente, Sophie vê-se privada da sua vida de uma forma que nunca imaginou. O antissemitismo propagandeado por Goebbels torna o mais normal cidadão numa espécie de autómato e os judeus, ciganos e “disformes” começam a sentir na pele o ostracismo nazi.

Como forma de catarse, Sophie estreita laços de amizade com Isaac, um velho alfaiate judeu descendente de Berequias Zarco, que tem em sua posse os já referidos manuscritos e está determinado em descobrir o seu propósito. Ciente da aliança entre Hitler e Estaline, Isaac sente que está iminente a profecia apocalíptica presente nos manuscritos e a sua demanda passa a ser a descodificação dos textos cabalísticos medievais, de forma a salvar a humanidade.

Isaac lidera também um grupo que se autointitula como “O Círculo”, um grupo composto por pessoas com deformidades diversas que são uma das maiores ameaças para a sociedade ariana. Entre os membros do Círculo contam-se anões, surdos-mudos, uma mulher que sofre de gigantismo e outro tipo de pessoas cuja diferença face à normalidade é alvo de perseguição por parte de uma sociedade que encontra, na esterilização dessas pessoas, uma forma de manter o seu ideal de perfeição intacto.

Quando alguns membros de “O Circulo” começam a aparecer mortos, Sophie embarca numa perigosa jornada que a leva enfrentar algumas das maiores ameaças que um ser humano pode sentir, levando-a inclusivamente a avaliar-se enquanto ser humano.

A relação entre Sophie e Isaac transforma-se e, enquanto o alfaiate lhe abre as portas do judaísmo e da Cabala, a adolescente transforma-se numa mulher sexualmente ativa que se apoia numa relação a três, que serve de ponte entre a pouca sanidade que lhe resta e um mundo que deixou de ser racional.

Com “A Sétima Porta”, Zimler embrenha o leitor num universo marcado pelo mistério e misticismo (ainda que longe da definição de “thriller” como a chamada de capa assim o define) e torna este livro num dos mais pertinentes exercícios sobre um dos períodos mais negros da história recente. Através de um lado metaforicamente delicioso e com uma narrativa que ganha balanço com o passar das páginas, o autor de “O Último Cabalista em Lisboa” desenvolve uma trama recheada de personagens cujos traços psicológicos são de uma excelência apenas ao alcance de poucos.

Neste livro é feita a exploração da maturidade de uma adolescente forçada a ultrapassar uma luta interna onde o bem e o mal não encontram definições em si mesmas. A dor da perda, seja física ou psicológica, deixa cicatrizes na alma, ainda que a existência passe a ser sinónimo de uma “mera” corrida de obstáculos.

“A Sétima Porta” é uma experiência de acutilante ferocidade, cujo começo em velocidade de cruzeiro rapidamente acelera dentro das nossas cabeças. Mais que um livro, estamos perante uma experiência de vida que mescla alegria, desespero, amor, raiva e sentimento de pertença. No fundo, este livro é uma leitura adulta repleta de significados culturais, que vão desde a cinematografia glamorosa de Greta Garbo até ao expressionismo de Robert Weine – onde a referência ao filme “O Gabinete do Dr. Caligari” encaixa que nem uma luva neste contexto –, passando pela efabulação de uma sociedade vertiginosa à beira do precipício.

In Rua de Baixo

terça-feira, 22 de abril de 2014

Dead Combo - "A Bunch of Meninos"

Made in Portugal



Ao longo das últimas três décadas, a música portuguesa viu nascer projetos que marcaram, definitivamente, o seu perfil, através de uma sonoridade que nos transporta para dentro de um universo particular, e ambivalente, ao qual ousamos chamar “portugalidade”.

Se recuarmos até ao final da década de 1980 e inícios de 1990, é pertinente lembrar a génese de bandas como, por exemplo, os Madredeus ou Sitiados, que com discos como “Os Dias da Madredeus” ou “Sitiados”, respetivamente, foram sinónimo de novidade. O seu som, apesar de resultar de uma criação idealizada em formas e conteúdos diferenciados, trazia inerente o fantasma do “fado”, aqui entendido como a materialização de um Portugal em forma de música. Se à banda de Pedro Ayres de Magalhães e Teresa Salgueiro estaria associado um elegante espetro de poesia e sons clássicos, João Aguardela e comparsas faziam da música um caldeirão festivo envolto de sarcasmo, boas vibrações e uma capacidade brilhante de auto caricatura de um povo à beira-mar plantado.

Mais tarde, já nos anos 2000, outras bandas, seguindo trajetos também eles muito colados à pele dessa coisa de ser português, conseguiram deixar a sua marca no panorama musical nacional. Falamos dos Deolinda e, claro está, dos Dead Combo.E é da dupla formada por Tó Trips e Pedro Gonçalves que nos chegou recentemente “A Bunch of Meninos”, o quinto registo áudio de uma banda que consegue reinventar o seu som a cada disco, de forma tranquila e firme, mantendo a sua identidade, e que gerou um (crescente) culto que já os levou a serem convidados de Anthony Bourdain no seu programa “No Reservations” ou a atuar em Cannes, aquando da estreia de “Cosmopolis”, de David Cronenberg.

Reza a lenda que os Dead Combo nasceram depois de uma conversa entre Tó Trips e Pedro Gonçalves no Bairro Alto, a propósito da edição de um disco de homenagem a José Afonso. O muito bem recebido primeiro disco da banda seria “Vol. 1”, gravado em 2004, mas a afirmação dos Dead Combo surgiria através de “Lusitânia Playboys” e “Lisboa Mulata”, registos datados de 2008 e 2011.

Cerca de três anos depois do último registo, eis que temos o prazer de voltar a ouvir a magia de Trips e Gonçalves, através de um álbum que mescla territórios sonoros tão “distantes” quanto o são o Fado, os tiques latino-americanos ou deliciosas melodias nascidas do universo western. Independente da sua inspiração geográfica, a música dos Dead Combo é como um regresso ao lar, a uma casa que é nossa por direito, que nos faz sentir confortáveis e bem-vindos.

E é essa sensação de bem-estar que nos entra alma adentro ao ouvirmos, por exemplo, os acordes de “Povo que Cais Descalço”. De perfil sedutoramente elétrico, Tó Trips e Pedro Gonçalves fazem as cordas soar como o bater de um coração tranquilo. Fecham-se os olhos e sente-se Portugal, a nossa pátria sonora. Antes, em “Waiting for Nick at Rick’s Café” – que surgiu no seguimento de um pedido da banda, infelizmente rejeitado, a Nick Cave, para que o australiano participasse neste disco – o álbum abre em ambiente doce e desarmante, através de uma cadência “fadista”, onde os instrumentos dialogam entre si como velhos amigos que partilham um segredo.

Para além das guitarras, doule bass, piano e melódica, instrumentos tocados por Trips e Gonçalves, “A Bunch of Meninos” está mais rock e conta com a ajuda da percussão de António Sérginho e da bateria de Alexandre Frazão. Essa valorização sonora salta ao ouvido em faixas como a gingona “Arraia”, a mais mexida “D. Emília”, a “lynchiana” “Mr. Snowden’s Dream” ou, no momento mais rockeiro de todo este álbum, a faixa-título, “A Bunch of Meninos”, única composição que junta a participação da dupla convidada.

Mas são, como seria natural, as guitarras que mais brilham neste disco e, em momentos como no entusiástico “Miúdas e Motas” e no mais blusy “Waits”, as cordas ganham acutilância face à ajuda de sonoridades como a melódica ou a bateria. Ainda que em toadas mais calmas e soturnas, as cordas dedilhadas neste disco assumem a forma de escadaria para um qualquer paraíso sonoro, tal como no maravilhoso tema “Zoe Llorando”, um dolente lamento que arrepia pela sua excelência. O toque nas cordas e a respiração suave de quem as toca tornam esta composição numa das canções mais humanas da carreira desta dupla, que opta por encenar a sua presença através das figuras de um cangalheiro e um gangster. Também envolta num ambiente melodramático, “B.Leza” surge como o exemplo máximo da harmonia entre guitarras (elétricas e acústicas), no caso sublinhado pelo som do piano.

“Dos Rios”, em ritmo descaradamente latino, é outra experiência à la Dead Combo e inicia e termina com vocalizações de Pedro Gonçalves, descambando num alegre convívio entre ambientes elétricos e acústicos, e serve como elemento simbiótico entre as bipolaridades estéticas da banda, que se adensam na faixa final do disco, “Hawai em Chelas”, um hino à luz de um disco que vagueia entre a obscuridade dormente e o brilho intenso.

Depois de uma década de excelentes discos e concertos que encantam através de uma simplicidade desarmante, os Dead Combo são uma das mais interessantes bandas deste imenso Portugal sonoro. “A Bunch of Meninos” é a confirmação, mais rock, entre a realidade e o sonho, de uma dupla dona de um perfil ímpar, de uma alma que extravasa fronteiras, sejam elas políticas, geográficas ou musicais. Um disco para ouvir, dançar e guardar. Com orgulho.

Alinhamento:

1 Waiting For Nick At Rick’s Café
2 Povo Que Cais Descalço
3 Arraia
4 Miúdas E Motas
5 Waits
6 Zoe Llorando
7 B.Leza
8 Dona Emília
9 A Bunch Of Meninos
10 Dos Rios
11 Welcome Simone
12 Mr. Snowden’s Dream
13 Hawai Em Chelas

Classificação do Palco: 9/10

In Palco Principal

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Infamous: Second Son

O destino foi alcançado



Depois do seu lançamento há já alguns meses, a PlayStation 4 ainda não havia apresentado um jogo que enchesse as medidas de quem já teve o prazer de estar em contacto com esta que é, sem dúvida, uma das mais prometedoras consolas jamais construídas. Ainda que “Knack” e principalmente “Killzone: Shadow Fall” tenham sido boas surpresas, exigia-se mais. E é isso que “Infamous: Second Son” é, mais, não de mesmo, mas de uma saga que ao terceiro episódio acerta na mouche!

Agora com um novo protagonista – Deslin Rowe -, “Infamous: Second Son” capta a atenção desde os primeiros instantes que nos remetem para um universo citadino, à média luz, sendo a ação ocupada por algumas provocações em forma de graffiti. Para ajudar o nosso personagem basta recorrer aos sensores de movimento do novo Dualschock 4 (a nossa vénia…) ainda que tais predicados não vão ser muito explorados ao longo deste jogo.

Em poucos minutos, sentimos a adrenalina de estar perante um novo jogo, uma nova aventura criada pela Sucker Punch Produtions que delegou novamente a Nate Fox a responsabilidade de inventar um jogo que pode vir a tornar-se emblemático no que toca ao universo PS4.

Entendido na perspetiva de uma terceira pessoa, “Infamous: Second Son” revela-se como um jogo de ação de sublime conceção que nos remete para os tempos em que, envoltos de uma deliciosa inocência, todos sonhamos em ser um super-herói. Bom, depois crescemos e deixamos a utopia de lado, pelo menos temporariamente, mas quando “assumimos” a pele de Deslin Rowe, o sonho renasce. Enquanto derrubamos inimigos pelas ruas de Seattle, temos um sorriso confiante na cara. Os truques e efeitos visuais da nova criação da Sucker Punch fazem-nos sentir, nem que seja por osmose, poderes incríveis que só a PS4 pode oferecer aquando na exploração de um universo literalmente aberto a todas e quaisquer experiências.

Envolto de um visual grunge (não é inocente Seattle vir a ser o cenário predileto deste jogo e existir uma revisitação ao universo Nirvana na banda sonora) Deslin Rowe é um anti-herói que depois de descobrir a fantástica sensação de dispor de superpoderes vários (algo que surge no seguimento de testemunhar um acidente de viação, de estar em contacto com um Condutor super-humano e perceber que consegue absorver os seus poderes) não hesita em rebentar com os seus inimigos ou transformar uma cidade num cenário de luz, cor e muita ação. Consciente, ou não, da potência do Departamento Unificado de Proteção (DUP), Rowe corre risco de vida ao interpretar o papel de Condutor, que outros gostam de apelidar de bioterrorista.



Divertido e sagaz, Deslin distingue-se dos seus “antecessores” muito por culpa dos seus poderes, podemos dizer, atípicos. Se nos dois primeiros episódios da saga os heróis tinham como armas a manipulação de elementos tradicionais, Deslin assume-se como uma autêntica “máquina de fumo e cor”. Para além de dizimar inimigos como uma sapiência única na arte do fumo (sim, dá um gozo do caraças rebentar com aquela malta!), consegue subir edifícios através de espaços de ventilação e fazer verdadeiros “arco-íris” de néon numa cidade cinzenta. A capacidade gráfica fantástica deste jogo deixa-nos de boca aberta e torna a aventura ainda mais apetecível. Mas será que vamos conseguir libertar as ruas das maléficas forças DUP?

Na realidade, tal tarefa é o grande objetivo deste jogo e, talvez, neste aspeto, a Sucker Punch pudesse ter sido mais ambiciosa. Ainda assim, as batalhas são extremamente motivadoras e repletas de ação, permitindo a Deslin conseguir realizar upgrades dos seus poderes ou conseguir novas habilidades na arte de luta através de feixes de néon ou belicismos em forma de fumo. Existem algumas (poucas) missões em formado “sidegame” que são interessantes. Podemos, por exemplo, tentar destruir drones das forças DUP, desafiar o poder de traficantes de estupefacientes ou descobrir registos áudio escondidos.

Eis um dos aspetos menos bem conseguidos de “Infamous: Second Son”, o seu ambiente algo monótono pois ainda que mudemos de zona os objetivos são semelhantes. Apesar disso, os checkpoints face às ações contra os efetivos DUP são suficientemente atrativos ainda que percam alguma da sua capacidade surpresa à medida que a aventura progride. A narrativa do jogo é muito agradável, sendo mesmo em alguns momentos imprevisível, mas os já referidos “sidegames” perdem quando comparados com outros jogos do género. Com relativo afinco, é possível terminar a aventura principal em cerca de 10 horas e as outras missões podem ocupar-nos horário semelhante.



Quando os créditos finais surgem (e não falamos propositadamente no texto em alguns dos meandros do jogo para evitar indesejados spoilers), e a música soa, ficamos com aquela sensação agridoce de um final que pressupõe mais aventuras. Ao longo de “Infamous: Second Son” toda a ação é fluída e cristalina, os detalhes são assombrosos e a qualidade gráfica não tem, para já, paralelo no atual universo das consolas. Por exemplo, o realismo da roupa de Deslin é completamente uniforme, realista, mediante os seus movimentos, as explosões de néon são verdadeiros feixes de luz e cor que abrilhantam as ruas desta Seattle privada e as pingas da chuva são absolutamente “reais”.

A Sucker Punch não transportou a verdadeira Seattle para dentro do cenário de “Infamous: Second Son” optando antes por uma criação urbana que transpõe de forma magnífica a atmosfera de uma cidade digital que revela segredos e “esconde” algumas particularidades anedóticas face a um cenário que revela, aqui e ali, laivos de intencional esquisitice artificial.

Mais do que uma recriação da realidade, estamos perante um (excelente) jogo de vídeo que torna imprevisível a reação da população perante a presença de Deslin. Se uns se revelam preciosos aliados, outros rejeitam a presença do graffiter. Existe inerente a este jogo uma certa noção de “moralidade”, ainda que satírica, algo estranha, que encontra eco nas “vias orgânicas” seguidas pelo herói deste jogo.
De acordo com a “positividade” do nosso gameplay, seremos recompensados através aquisição de algumas habilidades e poderes que serão negados quando optamos por uma atitude “kill them all”. Por isso, pensa bem antes de efetuar alguma ação pois o “cenário” pode mudar significativamente…

Questões moralistas à parte, se se estava à procura de um jogo que pudesse, definitivamente, dar a sentir as qualidades da PS4, “Infamous: Second Son” é uma aposta ganha. Para além de uma magnífica jogabilidade, explora de forma única as capacidades gráficas da consola e permite boas horas de diversão. Sim, o “gameplay” não se assume revolucionário, a narrativa tem alguns sintomas “monótonos” mas o resultado final é brilhante. Se alguém tinha dúvidas sobre a qualidade e capacidade da PS4, “Infamous: Second Son” prova que a nova consola da Sony está, definitivamente, no bom caminho.

In Rua de Baixo

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Guta Naki em entrevista

"A vida faz a ficção e vice-versa" 



Cerca de três anos depois de lançarem o primeiro álbum, os Guta Naki voltaram com “Perto Como”. A vocalista, e agora guitarrista, Cátia Sá Pereira abriu o coração e falou-nos do processo de realização do segundo tomo da carreira da banda, das diferenças concetuais face a "Guta Naki" e sobre o que inspira o grupo.

PP – A primeira faixa de “Perto Como”, "Ikari”, resulta de um sample retirado do filme “A Guerra do Fogo”, de Jean Jacques Annaud - um exercício que nos reporta aos primeiros tempos da era humana e da pura descoberta. A esta ideia pode aplicar-se algum tipo de paralelismo com a vossa música? Estão os Guta Naki em constante pesquisa (musical)?

Cátia Sá Pereira - Só não chamo paralelismo porque há uma tangência, queremos tocar no que nos toca, a descoberta dá-se no toque. Como fazer o fogo, como mantê-lo, como cuidá-lo. É o deslumbramento pela chama, o nosso processo é esse: chamamos a chama.

PP – Uma das maiores diferenças de “Perto Como” em relação ao vosso primeiro disco é a presença mais assídua da bateria, em detrimento da eletrónica. A Cátia também toca agora guitarra… Estas questões foram pensadas ou surgiram naturalmente?

CSP - Pensar é deixar surgir naturalmente, ir pensando, ir fazendo, vamos tendo desejos e concretizando as vontades. A parte rítmica foi sendo composta a partir de samples de bateria e beats programados, não houve propriamente uma intenção de substituição. A segunda guitarra surgiu como mais um processo de composição. Algumas canções nasceram assim, o esqueleto delas, voz e guitarra, mais como base para compor as melodias de voz e as letras.

PP – Ainda no que toca à “nova” sonoridade dos Guta Naki, notam-se alguns tiques “tropicais”, como por exemplo em “Onde Ela Mora”. Notam que evoluíram enquanto músicos e intérpretes, comparativamente ao vosso primeiro registo?

CSP - Notamos que tudo se desenrola, foi uma evolução no sentido da transformação se dar de forma gradual e progressiva, contínua.

PP – Depois de ouvir “Perto Como” sente-se que este é um disco de corpo inteiro, pensado e trabalhado meticulosamente. Em que e como basearam o seu processo criativo?

CSP - Um dos processos foi gravar todos os ensaios, fazíamos vídeos, temos registo de quase todos os começos das músicas.

PP – Não há dúvida que a internet é uma das formas mais imediatas e financeiramente mais atrativas de promover um trabalho. No final de janeiro deram um concerto através do vosso site. Como surgiu essa ideia? Pensam repetir a mesma?

CSP - Não me lembro como surgiu, tínhamos tido a ideia de um concerto online antes de lançarmos o primeiro disco, concretizámos agora. Repetir é uma hipótese, sim, gostámos da experiência, íamos conversando com o público pelo chat, foi interessante.



PP – De volta à vossa musicalidade... Os Guta Naki emanam uma atmosfera que mistura desejo e ingenuidade, através de uma poesia “literária” e complexa. Onde vão buscar a vossa inspiração?

CSP - Não sei se percebo bem em que sentido é que consideras ingénua, a arte é sempre uma construção. A inspiração vem de todo o lado, dos livros, dos sonhos, da música, das conversas, das pessoas, a vida faz a ficção e vice-versa.

PP – Sentem algum carinho particular por alguma das vossas composições?

CSP - Todas elas têm o seu lugar. Dependendo do dia, podemos ter alguma que preferimos ouvir... Hoje estou em dia de “Onde Ela Mora”.

PP – Ainda que estejamos sob o efeito de um novo lançamento, tivemos de esperar quase quatro anos para voltarmos a ter novidades dos Guta Naki. Não vos pareceu demasiado tempo?

CSP - Na verdade, foram três anos e pouco: o primeiro disco saiu em novembro de 2010, e este em fevereiro de 2014. Foi o tempo necessário para fazer o disco que queríamos fazer, não achámos muito. Em alguns momentos sentimos a pressão do tempo, mais pela ansiedade de mostrar as coisas novas, mas isso não interferiu para acelerar o processo.

PP – Têm certamente preparada uma série de eventos para apresentarem “Perto Como”...

CSP - Temos algumas datas em agenda, vamos anunciando na nossa página do facebook. Passem lá!

In Palco Principal

segunda-feira, 7 de abril de 2014

“Nunca te distraias da vida”
de Manuel Forjaz

A vida em 20 lições



«Poderei morrer da doença, mas a doença não me matará.» Escrita na capa do livro, esta frase reflete o estado de alma de alguém a quem a vida se tornou madrasta através da presença do cancro. Assim, sem meias palavras, Manuel Forjaz, encara a doença de frente, pelos cornos.

De espírito aventureiro e com uma vida onde a iniciativa sempre esteve presente, este moçambicano já foi um pouco de tudo. Atrasou os estudos em nome da aventura, viveu o sonho, regressou à causa académica, construiu orgulhosamente uma família, foi empresário de sucesso, sentindo as oscilações dessa vida face à instabilidade das finanças e mercados, fundou projetos como os Pais Protetores, o Instituto do Empreendedorismo Social e lançou o TedxOPorto, tornando-se uma dos maiores oradores nacionais.

Hoje, aos 51 anos é um sobrevivente convicto. E é essa a história que narra em “Nunca te Distraias da Vida” (Oficina do Livro, 2014), uma biografia que foge à própria noção de biografia, um manual de sobrevivência sem o ser, páginas escritas de coração aberto.

Manuel Forjaz trata tudo pelos nomes, não foge ao combate. Luta de forma corajosa e extremamente racional, filosofia que merece o devido aplauso pela frontalidade e coragem. Através um discurso direto e informal, “Nunca te Distraias da Vida” é um relato em vinte lições. Pedaços da vida de um Homem que agradece a ajuda da família e amigos, chora perdas, abraça saudades, vive da e com a esperança, procura soluções.

Depois de escrever amiúde na sua página de Facebook, tornando essa virtual forma de comunicação numa espécie de “diário de bordo”, Forjaz quis colocar em livro a sua experiência de vida recente. E, este testemunho humano e sensível, resulta num dos livros mais interessantes que 2014 já viu nascer.

Folhear este livro é entender uma doença que dinamita a vida de quem padece dela e dos seus familiares e amigos. Desde o diagnóstico, passando pelos tratamentos, pelas infelizmente momentâneas tréguas da doença, os seus regressos e a esperança que nunca desaparece, Manuel Forjaz consegue a proeza de racionalizar o seu estado de alma e essa fabulosa lição de humanidade é fruto de uma vida cheia de amor e carinho, valores que apenas quem ama pode dar e receber.

Estando a palavra “morte” riscada do seu vocabulário, Manuel Forjaz ensina-nos formas de lidar com o estado enfermo, partilhando, por exemplo, ideias que podem ajudar a desmistificar e a encarar de outra forma o cancro. Os dois anexos presentes nas últimas página surgem como “mandamentos” para se viver melhor com a própria doença ou com a enfermidade alheia.

Livro que se lê num ápice, “Nunca te Distraias da Vida” é um dos mais pertinentes e racionais testemunhos sobre a força de viver, a vontade de quebrar barreiras e obstáculos sejam eles biológicos, psicológicos ou da própria alma. São quase 170 páginas de um constante carpe diem escritas por alguém se se intitula “otimista esquizofrénico”. Tivéssemos todos um quinto da força deste Homem e o mundo seria, sem qualquer dúvida, muito melhor. A nossa devida vénia. Bem-haja Manuel!

Nota: Este texto foi escrito antes da morte de Manuel Forjaz, ocorrida ontem, dia 6 de Abril.

In Rua de Baixo

quinta-feira, 3 de abril de 2014

“Judeus Ilustres de Portugal”
de Miriam Assor

A pedra vive acima do tempo



Diz Miguel Esteves Cardoso no prefácio desta obra: «Este livro de Miriam Assor fez-me chorar e gritar de alegria muitas vezes». E é essa sensação que fica depois de ler-se “Judeus Ilustres de Portugal – 14 homens e mulheres que marcaram a História do nosso país” (A Esfera dos Livros, 2014), um livro que retrata, através de uma linguagem excelsa, o percurso ímpar de 14 vidas incomuns que se pautaram pelo amor à causa judaica, alicerçadas na sapiência, altruísmo e paixão pelo próximo.

Depois de gozarem de uma certa liberdade por terras lusas, os judeus foram alvo de aberrante perseguição após o malfadado Édito da Expulsão, prerrogativa de D. Manuel I em 1496, que obrigou os chamados cristãos-novos e os muçulmanos a sair de Portugal sobe pena de serem alvo de sevícias várias – como por exemplo a Matança da Páscoa em 1506 –, tarefas tão do agrado da “santa” Inquisição. A questão mudaria com a sensatez de Sebastião José de Carvalho e Melo, mas voltaria a tremer nos tempos de Antigo Regime.

Nascida no seio de uma família judaica ortodoxa, Miriam Assor, filha do Rabino Abraham Assor – uma das personalidades com destaque neste livro –, sente a vida mudar depois de uma visita a alguns campos de “trabalho” nazis. Troca o curso de Psicologia Aplicada pelo amor ao voluntariado e aventura-se pelos kibbutz israelitas. No regresso a Portugal, estuda Comunicação mas opta por deixar o canudo de lado e ingressa na companhia aérea El Al durante cerca de uma década.

Por entre pontes aéreas, Miriam Assor publica um livro de poemas (“Libi”), ficando o bichinho da escrita numa mente que apenas descansaria quando as letras fossem a sua vida. Foi depois cronista em o “O Independente”, assumiu o cargo de comissária de eventos culturais e manteve uma atividade literária assídua publicando crónicas, biografias. Agora chega-nos “Judeus Ilustres de Portugal – 14 homens e mulheres que marcaram a História do nosso país”.

Ao longo de doze capítulos, Assor apresenta-nos homens e mulheres que simbolizam valores como a coragem, a perseverança e uma vontade maior que a vida de abraçar a sua religião. Para isso tiveram de sair de Portugal, definitivamente ou não, de forma a preservar uma memória, um povo, uma religião ameaçada pela ignorância alheia. Relegaram a conversão e contribuíram de forma inequívoca para o desenvolvimento de áreas como a ciência, a matemática, o humanismo e a cultura nacionais.

Desde o exílio tolerante de Isaac Aboab da Fonseca em terras holandesas, o humanismo universalista de Sam Levy, a coragem dos irmãos Sequerra, a comovente emancipação da “Senhora” Dona Grácia Naci, até ao lirismo de Alain Oulman, bem como outras histórias e protagonistas, este livro presta homenagem a vidas que mudam a própria vida, experiências maiores do que aquilo que os livros registam, gente convicta da possibilidade de tornar o mundo num local melhor.

De forma apaixonada e, podemos mesmo afirmar, comovente, Miriam Assor é protagonista de um dos mais interessante e recomendáveis livros sobre a diáspora de um povo que, incompreensivelmente, foi sendo vítima de intransigência cultural e religiosa ao longo dos séculos. Ao folhear, ler e ver, estas páginas ficamos com o melhor de gente de corpo e alma, de passado, presente e futuro, de homens e mulheres que se afirmam por algo que apenas assiste aos prescritos. A eles dizemos muito obrigado.

In Rua de Baixo

terça-feira, 1 de abril de 2014

“O Ano em que me Apaixonei por Todas”
de Use Lahoz

O amor é um gajo estranho


 
Um ilustre desconhecido por terras lusas, o catalão Use Lahoz chega agora a Portugal com um dos livros que mais impressionaram a crítica espanhola no ano de 2013, vencendo mesmo o prestigiado Prémio Primavera de Romance.

Falamos de “O Ano em que me Apaixonei por Todas” (Topseller, 2103), o terceiro tomo da aventura literária de um licenciado em Humanidades que, durante a sua época de estudante, ousou viver entre a Europa e a América do Sul.

Entre a sua ainda breve bibliografia, Lahoz conta com obras como “Los Baldrich” e “La Estacíon Perdida” – ambos sem edição portuguesa -, sendo que logo na sua primeira publicação, “Leer del Revés”, foi alvo de excelentes críticas no Festival do Primeiro Romance na francesa Chambéry.

Em “O Ano em que me Apaixonei por Todas”, o escritor natural de Barcelona ousa fazer um livro tocante que se serve de uma linguagem romântica apimentada por deliciosos tiques de uma comédia inteligente, que reforça a ideia que na vida as coincidências são apenas meras peças do original puzzle da existência.

Divido em quatro partes – ou atos -, este livro centra-se na vida de Sylvain, um parisiense que, apesar de se aproximar a passos largos da terceira década de vida, teima em não aceitar o avançar do calendário da vida, fechando-se sobre si mesmo afastando com um simples abanar de ombros a responsabilidade da idade adulta.

Dono de virtudes várias, Sylvain encontra-se trancado sobre si mesmo sob o Síndrome de Peter Pan, recusando aliar a noção de competência à de equilíbrio no que toca ao amor. Heike, a sua antiga namorada, está longe de ser um relacionamento (ultra)passado e, de forma a não ficar muito longe dela, aceita um emprego pouco entusiasmante em Madrid.

Apesar de uma timidez emocional castradora, Sylvain decide recuperar a atenção e amor de Heike, mas a meio desse intrincado processo conhece alguém que o muda por completo e o desafia a fazer escolhas, opções. No meio deste turbilhão emotivo, Sylvain encontra acidentalmente um manuscrito que revela a fascinante história familiar do seu vizinho Metodio Fournier e, ao entrar em contacto com aquela realidade, sente que a vida – enquanto exercício relacional – pode mudar através de um somatório de coincidências.

Entre cenários que trazem à memória os peculiares universos de filmes como “O Fabuloso Destino de Amélie” ou “Amor ou Consequência”, “O Ano em que me Apaixonei por Todas” é um livro que nos conquista à medida que nos embrenhamos nas páginas, ainda que o seu início seja algo “desligado” – à semelhança da personalidade de Sylvain -, mas que ganha consistência a cada novo personagem ou cenário.

Através de um exercício consciente de uma narrativa especial, Use Lahoz consegue limar as arestas de um romance que foge da “banalidade” com uma assinalável sapiência, assentando num brilhante dinamismo com recurso a flashbacks, metáforas e atos de “voyeurismo” que se complementam entre vivências passadas e a atual cultura de nuestros hermanos.

Ainda que a paixão não seja um sentimento de fácil entendimento, este livro dá-nos uma outra perspetiva sobre essa aglutinadora sensação. E, tal como Sylvain afirma nas primeiras frases deste livro, era bom que existisse uma oficina que reparasse os desamores, que substituísse as peças do coração. Valha-nos Monsieur Tatin.

In Rua de Baixo