sexta-feira, 17 de outubro de 2014

“Sara Prefere Correr”
de Chloé Robichaud

Pista de obstáculos



Sara Lepage (Sophie Desmarais), 20 anos, tem um sonho: alcançar a glória do atletismo. Menina calma, de olhos grandes, Sara recebe um convite para treinar em uma das mais referenciadas equipas de atletismo universitário do Canadá. Apesar das reticências da mãe (Helene Florent), Sara ruma a Montreal na companhia de Antoine (Jean-Sebastien Courchesne), colega de trabalho no restaurante onde Sara faz um part-time, e aposta tudo no sonho de menina.

As dificuldades financeiras fazem com que Antoine sugira a Sara um esquema utilizado pelos jovens universitários. Assim, os amigos tornam-se marido e mulher de forma a conseguir um subsídio do Estado que apoia jovens casais estudantes. A esperança invade o universo de Sara e Antoine mas a vida revela-se numa tortuosa pista de obstáculos.

Apresentado na mais recente edição do Festival de Cannes e integrado na Seleção Oficial Un Certain Regard, “Sara Prefere Correr” é a mais recente aposta cinematográfica da canadiana Chloé Robichaud (que assina a realização e argumento) e valeu à realizadora natural do Québec o Prémio Signis, no Festival de Cinema Independente de Buenos Aires, assim como o galardão de Melhor Filme no Baja International Film Festival. Sophie Desmarais também viu o seu trabalho reconhecido ao arrecadar o Prémio de Melhor Atriz no já referido certame argentino.

Ao longo de cerca de hora e meia, somos convidados a acompanhar uma fatia da vida de Sara Lepage que sonha ser uma atleta de referência. O seu dia-a-dia é feito na companhia das colegas de aventura, entre o ginásio e a pista. A paixão pela corrida é a grande razão de viver destas raparigas que centram a sua existência no desporto rejeitando outros sonhos ou perspetivas.

Quando surge o convite para Sara ir para Montreal para se juntar à equipa universitária de McGill tudo muda, ou melhor, o sonho é cada vez mais real. Depois, o já referido matrimónio de conveniência adensa a fragilidade emocional do “casal”. Com diferentes perspetivas da vida, Sara e Antoine unem-se pela fuga de si próprios.

Uma das colegas mais chegadas de Sara, e também atleta, Zoey (Genevieve Boivin-Roussy) confronta a amiga com o que esta pensa fazer da vida. A resposta não surpreende. Sara quer correr, apenas correr.
O personagem de Sara, excelente diga-se, é a trave mestra de um filme que coloca a nu as fragilidades de uma menina de 20 anos cuja vida apenas tem sentido quando corre. Mas tal como Sara tem dificuldade em impor a sua personalidade em termos sociais, também Chloé Robichaud tem problemas em tornar “Sara Prefere Correr” em um filme que mantenha a clarividência do início ao fim.

Ainda que a metáfora do atletismo assente que nem uma luva na pessoa de Sara Lepage, a narrativa de Robichaud, perde-se em um excesso de grandes planos e cenas de pormenor que, ainda assim, a espaços, permitem ao espetador absorver, com competência, o meio ambiente sem grande informação adicional.
A constante fragilidade de Sara, enquanto figura maior da película, leva a uma anulação da mesma, conduzindo o filme para momentos onde a frustração social e íntima da personagem principal acaba por colocar em causa o fio condutor de um filme que tende a perder-se em análises superficiais que não procuram um (mais) profundo trabalho patológico ou uma tentativa de revelação.

Ainda assim, Robichaud consegue dar mais “vida” a Antoine que se revela mais humano, mais sensível e emocionalmente também mais interessante. Tal é comprovado nos momentos mais tensos de “Sara Prefere Correr” onde o drama e o humor, ainda que fugidio, afastam uma certa opacidade fílmica no trabalho da realizadora canadiana.

A câmara, por vezes timidamente subjetiva e de características indie, trabalha bem os silêncios e os planos que seguem Sara pelas costas provocam um sentido de intimidade ao espetador. É também na quietude que Sara pensa e transmite a sua mensagem através da lente de Robichaud. Por vezes não são necessárias palavras para testemunhar um sentimento, uma emoção, e os melhores momentos do filme são aqueles em que quem está na sala de cinema assume o papel de testemunha de uma ação digerida entre uma muito interessante dança entre planos de pormenor, a música e a contrição de uma personagem cujo coração a atraiçoa.

Apesar de “Sara Prefere Correr” não ser uma obra-prima, é um objeto narrativo interessante. Os grandes planos assumem-se como “intertítulos” (as mensagens dos bolinhos da sorte são o melhor exemplo disso) mas por vezes condenam o filme a uma toada algo contraproducente. Por outro lado, a meticulosa formalidade de Sara resulta na maior parte do filme mas também retira vestígios de um crescimento íntimo da personagem.

Muito bem filmado, “Sara Prefere Correr” apresenta-se como um retrato que não define o seu perfil. São frequentes as oscilações entre excelentes momentos e períodos mais passivos e apesar da boa química entre Desmarais e Courchesne, os diálogos minimalistas entre ambos condenam uma maior profundidade dramática.

Numa corrida com alguns obstáculos, Sara e Robichaud, dão boas indicações para o futuro apesar de neste filme não irem além dos tempos mínimos. No futuro, esperemos, esta dupla pode bater recordes.

In Rua de Baixo

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