quinta-feira, 30 de outubro de 2014

“Pontes de Sarajevo”
Vários realizadores

Episódios de vida de uma Cidade



A Europa e o Mundo mudaram significativamente nos últimos 100 anos. Duas Guerras Mundiais passadas, muitos países nascidos e impérios terminados, alteram, definitivamente, a face de um planeta marcado pelos conflitos e as fronteiras políticas assumiram a forma de um intrincado puzzle depois um século de discórdia.

Assim chegamos a 2014, ano que lembra o centenário da morte do Arquiduque Francisco Fernando à mercê de Gavrilo Princip, um anarquista radical sérvio que “provocou” uma verdadeira revolução mundial.

A propósito nessa celebração, e sob a direção artística de Jean-Michel Frondon, treze cineastas europeus foram convidados a dedicar a sua câmara a Sarajevo e ao que a cidade significa para a cronologia da Europa nos últimos 100 anos.

Fruto de abordagens e filosofias díspares entre si, “Pontes de Sarajevo” é um projeto delicado cuja pertinência se revela através das perspetivas dos realizadores convidados cuja orientação e origem são sinónimo de uma muito pertinente análise de uma cidade que vive sob o efeito de uma retorcida e dilacerante memória que a assombra desde 1914.

Em uma viagem entre o passado e os traumas associados a um presente dorido, “Pontes de Sarajevo” – trabalho que teve a honrar de configurar na seleção oficial da mais recente edição do Festival de Cannes –, assume uma pretensão exorcista rumo a um estado de redenção.

O ponto de partida desta aventura, “Querida Noite”, um trabalho do búlgaro Kamen Kalev, retrata o próprio ato do assassinato de Francisco Fernando na noite de 28 de junho de 1914, perto da ponte romana da capital bósnia, episódio que dinamitou a política europeia e despoletou a Primeira Guerra Mundial.

Ao longo de cerca de duas horas, somos convidados a assistir a uma sucessão de eventos cronológicos que se pode traduzir (ou não) na história recente de Sarajevo e cabe a Kalev o privilégio de abrir a sequência com uma visão onírica que mistura uma profunda reflexão entre o destino, a providência e o livre arbítrio. Os grandes planos de Kamen Kalev revelam a intimidade de um ser (Francisco Fernando) à beira do sacrifício onde o medo se traduz na massa anónima.

E é esse também o sentimento que o sérvio Vladimir Perisic tenta transmitir em “A Vontade das Sombras”, um exercício em surdina construído com o auxílio de um conjunto de confissões sublinhadas por uma câmara que avança por entre pedaços de uma memória coletiva aqui representada por um arquivo do género bibliotecário. Tal como em outros momentos de “Pontes de Sarajevo”, o papel do espetador encontra paralelismo em um peculiar instrumento voyeur que versa sobre um acontecimento transversal que é a história da génese do conflito dos Balcãs.

O terceiro tomo deste conjunto fílmico é da responsabilidade do italiano Leonardo di Contanzo e “O Posto de Vigia” leva-nos até a uma trincheira da Primeira Guerra Mundial onde um pequeno pelotão de soldados italianos tenta reconquistar um posto de vigia que está assombrado pela exímia pontaria de um atirador inimigo.

O cheiro a morte, a desespero, a medo puro e duro, sente-se em “O Posto de Vigia” e é sinónimo do dilema do soldado em enfrentar a morte ou optar pelo cobarde ato suicida. A honra da guerra é a medalha dos destemidos e a cruz dos anónimos.

Já “Princip, Text”, da alemã Angela Schanelec, espelha algumas passagens de uma entrevista de Gavrilo Princip que se confunde com laivos de urbanidade contemporânea e fala do fim da Sérvia e de um ideal político que representa a salvação da alma. Os grandes planos dos rostos do jovem casal que lê os excertos de Princip são o espelho dessa dicotomia entre a paz e o conflito (interior).

“Europa”, do romeno Christi Puiu, revela um ambiente natalício que tem como figuras centrais um casal que no conforto da cama reflete sobre o livro “A Análise Espetral da Europa”, um misto de reflexão sobre os conflitos raciais dos Balcãs e uma atribuição de culpa, mas que deixa também espaço para a especulação de datas e o fator coincidente do aspeto numérico das mesmas. Mais uma vez, a câmara espreita a narrativa de uma perspetiva distante mas atenta e assim o espetador entra pelo quarto do casal fruto de uma porta convenientemente aberta e que convida à partilha.

Cabe ao franco-suíço Jean-Luc Godard um dos exercícios mais complexos de “Pontes de Sarajevo”. Dono de uma linguagem cinematográfica muito própria e experimental, Godard transforma “A Ponte dos Suspiros” em uma narrativa que resulta de um sucessivo quebranto de sons e imagens que mistura o bem e o mal, a morte e a sobrevivência, a violência e o conflito, através de uma forma documental. Faz-se o elogio de uma abordagem que coabita matéria e espírito e onde o poder da imagem (no caso a Fotografia enquanto expressão) capta uma realidade em estado bruto.

Tendo como pano de fundo um bonito preto e branco, o ucraniano Sergei Loznitsa oferece-nos “Reflexo(e)s”, um interessante esboço que faz entender as duas perspetivas de uma mesma imagem e que reúne em si a sobreposição de uma fotografia sobre um episódio quotidiano.

Tendo como matéria-prima fotografias dos defensores sérvios da autoria do bósnio Milomir Kovacevic, Loznitsa cria um ambiente que convida à abstração da visão face ao elemento da memória. Neste caso, é a simplicidade que se revela o maior trunfo.

“A Viagem de Zan”, do espanhol Marc Recha, conta-nos a epifania de um rapaz que vive com a sua família no interior da Catalunha que tenta entender um conflito responsável pelo abandono da sua terra natal. Para conseguir o desejado equilibro, Zan conta com as memórias que ganham vida pela voz dos relatos do seu irmão.

Recha consegue um filme de uma beleza fotográfica impar e joga com aquilo que o Homem tem de mais sagrado: os seus sentimentos. Um dos momentos mais inspirados de “Pontes de Sarajevo”.

Já a bósnia Aida Begic não segue esse lado mais narrativo e aposta num género documental que torna “Álbum” em um testemunho emocional da relação entre a cidade e os seus habitantes, entre as memórias de um conflito e a esperança de um futuro melhor. Sarajevo é, através da lente de Begic, uma paixão, um primeiro amor que nunca se esquece mas que entretanto terminou.

“Sara e sua Mãe”, da autoria de Teresa Villaverde, mostra a mudança de casa de uma família que conta com a ajuda de uma amiga da pequena Sara. Enquanto se abrem caixotes e se arrumam coisas, são as memórias que se sentem, umas partilháveis outras sob a forma de íntimo segredo. A realizadora mostra também como a cultura é um fenómeno que caiu no esquecimento da Sarajevo contemporânea que encerrou os seus museus e outros espaços lúdicos castrando assim o lado cultural de um povo.

“A Ponte”, do italiano Vicenzo Marra, revela um casal sérvio que abandonou o país aquando do cerco de Sarajevo e durante duas décadas conseguiu equilibrar-se em uma terra estranha e não deixando que as diferenças (ele muçulmano, ela cristã) assombrassem a sua existência.

Marra filma a saudade entendida de diferentes ângulos, sentimento esse que apenas é desafiado pela morte de um ente querido que faz o casal recuar ao passado e sentir a dor da perda antigas…

De França, sob a batuta de Isild Le Besco, surge um dos mais emocionantes relatos de sobrevivência de “Pontes de Sarajevo” e a história de um menino de cinco anos, órfão de pais e que vive com a avó, e que luta pela sua vida social e fraterna, é muito comovente.

Em uma cidade vítima de um conflito quase eterno, o nosso pequeno herói vagueia pela urbe e serve-se desse anonimato para se assumir como uma peça fundamental em um cenário em tons cinza. A camara de Besco acompanha esses atos de bravura com descrição e uma apaixonante sobriedade.

“Pontes de Sarajevo” tem como último capítulo “O Silêncio de Mujo”, da suíça Ursula Meier e mostra um treino de futebol onde Mujo, uma criança de dez anos, torna-se no protagonista ao falhar uma grande penalidade e ser obrigado a procurar a bola para lá da cerca.

Paredes meias com o campo, está um cemitério que mostra a triste realidade de uma cidade dividida entre muçulmanos e católicos e cujas lápides revelam vidas perdidas de forma precoce. Nesta viagem ao “reino dos mortos”, Meier transporta Mujo para o seio de uma realidade que mostra as divisões provocadas entre a vida e a morte e como um abraço anónimo pode ser sinónimo de um esparso momento reconfortante.

Pelo meio das curtas, surgem animações da autoria de Francois Schuiten e Luis da Matta Almeida que servem de interlúdio e fazem a ligação entre as referidas 13 obras que mostram algumas das feridas de uma cidade que teimam em não sarar.

No seu todo, “Pontes de Sarajevo” faz a ligação entre a memória e o presente sem descartar uma ambiência nostálgica, mas sempre com um sentimento de esperança, otimismo e fé, nunca esquecendo o lado cultural de um povo que, gradualmente, volta a reclamar tal desígnio. O futuro a todos pertence e estes trezes pedaços de história vão fazer parte dele.

In Rua de Baixo

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