quarta-feira, 8 de outubro de 2014

“O Quarto Azul”
de Mathieu Amalric



Obsessão venenosa

Inspirado em um romance do belga Georges Simenon, “O Quarto Azul” é a segunda experiência do francês Mathieu Amalric enquanto realizador e fez parte da Seleção Oficial da mais recente edição dos festivais de Cannes e de Nova Iorque e conta com a produção de Paulo Branco.

A trama tem como figuras centrais Amalric -que junta a função de ator à realização -, Stéphanie Cléau e Lea Drucker e conta a trágica e misteriosa estória de uma relação extraconjugal que termina em uma sala de tribunal.

Tudo começa e acaba no quarto azul que dá nome a este curto mas muito interessante filme. Julien (Amalric) encontra acidentalmente Esther, (Cléau) uma antiga colega de escola que tinha uma secreta paixão por ele mas que por questões diversas nunca se concretizou por falta de interesse por parte de Julien. Os anos passaram e Julien e Esther seguiram caminhos diferentes.

Até que sentimentos antigos são finalmente consumados num quarto de hotel local, em algumas quintas-feiras. A luxúria toma conta dos dois amantes que têm nas paredes azuis da referida divisão hoteleira um espaço para explanar todo o desejo, havendo também lugar para promessas várias, para segredos e pedidos de uma fidelidade futura apesar do que os anelares das suas mãos esquerdas evidenciavam.

Amalric, realizador, torna a narrativa numa espécie de flashback constante que se mistura com momentos presentes. O mistério surge bem desconstruído fruto de um competente drama que desrespeita a normal cronologia e consegue captar a atenção do espetador que sente também ele enleado numa teia de mistério, crime, obsessão, traição e culpa.

À medida que o filme flui, somos confrontados por pequenos pormenores que fazem toda a diferença. Nas mãos de Amalric, a câmara dá espaço a atores e cenários com igual parcimónia e os planos estáticos, ainda que convenientemente curtos, assemelham-se a provas em local de crime. Mais, o realizador de “O Quarto Azul” filma os momentos de paixão entre Julien e Esther, qual femme fatale, como se de uma pintura de tratasse (excelente, a fotografia) onde toda a expressividade e sensualidade de Stéphanie Cléau – atual companheira do realizador e ator – não deixa por certo indiferente quem está na sala de cinema.

Mas mais que uma nota de exacerbado erotismo, os encontros entre Julien e Esther são as peças de um puzzle que vai sendo construído à sua volta, principalmente devido ao que tal pode significar face a dois casamentos à beira do colapso ainda que por questões muito diferentes.
Amalric explora de forma declarada a dicotomia entre os papéis de Esther e Delphine, entre a amante e a dona de casa, entre o segredo e a realidade, entre o prazer e o quotidiano. Mas tal não é apenas conseguido através das cenas carnais (bem quentes e expostas, por sinal) mas sim pela abordagem feita a Julien e Delphine enquanto um casal acomodado que vai revelando aqui e ali tentativas de salvar uma relação claramente desgastada.

Essas transições de intensidade são uma das mais-valias de “O Quarto Azul”, um filme que sabe jogar entre o clímax e a normalidade, entre a liberdade e a clausura, entre a pacatez e o crime. A forma como a narrativa se expõe ao espetador é também sinónimo da paixão com que a mesma é filmada, estejamos nós a falar de cenas de grande intensidade sexual ou aquando da frieza de um inquérito policial. Para tal é necessário um claro e equilibrado sentido entre amor e abandono, ainda que tal diste uns meros segundos em termos de ação.

Para além disso, os fragmentos fílmicos de Amalric, bem secundados na mestria cinematográfica de Christophe Beaucarne ou na musicalidade de Grégoire Hetzel, apresentam-se em um quase infinito número de assertivos detalhes que completam o todo.

“O Quarto Azul” é um excelente exemplo entre a arte de filmar e a capacidade de mostrar uma intriga policial onde a perceção psicológica dos personagens adensa o mistério, enfatiza o crime e faz sobressair o poder incomensurável de uma obsessiva paixão que transporta na face dos principais protagonistas sentimentos como a devoção frenética e a culpa que funcionam como uma espécie de fronteiras entre a normalidade e a transgressão, “legitima” ou não.

In Rua de Baixo

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