quinta-feira, 14 de agosto de 2014

“As Leis da Fronteira”
de Javier Cercas

Hoje por ti, amanhã por mim



Catalunha, finais dos anos 1970. A Espanha inicia o processo democrático ainda com as feridas abertas pelo Franquismo bastante presentes. No centro da narrativa está Zarco, um conhecido delinquente adolescente que se tornaria numa das maiores figuras mediáticas de um país em transição.

A acção decorre em Girona, uma cidade repleta de charnegos (emigrantes que chegavam à Catalunha) e que sente a liberdade ainda como um vento novo que sopra a esperança sobre todos. É nesse cenário que o jovem Ignacio Canãs, aos 16 anos, sofre na pele as vicissitudes provocadas pelas sucessivas humilhações que têm no charnego Batista, um novo colega de escola, o maior responsável.

Na incessante procura de fugir a tal destino, Canãs encontra um porto de abrigo no salão de jogos Vilaró que tem como responsável o senhor Tomàs. E é ai que Ignacio conhece Zarco e Tere, uma espécie de Bonnie and Clyde versão teen, oriundos dos subúrbios do Bairro Chinês.

Paulatinamente, Igancio, que passa a responder pelo nome de guerra de Gafitas (caixa-de-óculos), começa a integrar as atividades do gangue de Zarco exteriorizando dessa forma a rebeldia acumulada por uma vida castrada de sentido.

Mas entre Canãs e a pandilha de Zarco existem diferenças, fronteiras. Se os jovens rufias que vulgarmente frequentam o bar La Font nada têm a perder, Gafitas encontra-se no outro lado de barricada sociocultural.
Já devidamente por dentro das tramoias do gangue e decididamente atraído pela bela Tere, Igancio Canãs sente-se livre, é um homem novo, ainda que essas mudanças coloquem em causa tudo o que viveu até esse dia, inclusivamente a sua relação familiar.

Mas, quase de uma forma natural, quando um assalto a um banco corre da pior maneira possível, Zarco, Gafitas e outros membros da quadrilha são apanhados pela justiça. No ar ficou um sentimento de traição. Ainda que com destinos díspares, os personagens principais desta aventura sentem a vida marcada por acções que desafiavam a justiça e acima de tudo a liberdade recentemente adquirida depois de décadas de ditadura.

Dividido em duas partes, “As Leis da Fronteira” (Assírio & Alvim, 2014) é um romance que traz à tona questões como a pertença a um grupo e a segurança e a estabilidade social que tal pode significar em termos emocionais que no caso de Canãs é sinónimo de um afastar para longe o queixume indesejável de um estatuto solitário e sofredor.

Javier Cercas, um dos mais emblemáticos escritores da sua geração e que já arrecadou galardões como o Prémio Nacional de Literatura, o The Independent Foreign Fiction ou o Prémio Internacional do Salão do Livro de Turim, consegue explorar de forma inteligente a questão da violência na adolescência revestida de uma crueldade típica que se revela numa espécie de cunhagem pessoal, critica e descritiva do “outro” assim como a força que os media possuem ao transformar uma pessoa como Zarco em um troféu ideológico da sociedade pós-franquista.

Entre pares, ainda que de condições sociais distintas, Zarco e Gafitas reclamam dívidas de gratidão como uma forma de veículos chantagistas, nem que para tal seja necessário passar mais de 30 anos, altura em que um escritor consulta os personagens principais de uma estória bizarra de forma a conseguir apresentar o puzzle da vida do adolescente que se transformou no paradigma do delinquente.

Para tal, o autor de livros como “Anatomia de um Instante” serve-se de um discurso que vagueia entre a narrativa direta e a metáfora. Se, por um lado, a fronteira pode ser a condição social dos personagens, por outro pode ser a linha que separa a marginalidade da “normalidade”. Em determinadas fases deste romance, essa fronteira pode mesmo assumir as diferentes formas de interpretar um assunto ou, num patamar extremista, aquilo que separa Canãs de Gafitas.

Tomando como inspiração Juan José Moreno Cuenca, cuja alcunha era “El Vaquilla”, Cercas “transforma” Zarco – mais tarde Antonio Gamallo – no expoente do simbolismo romântico do delinquente que espelha as frustrações que resultaram da esperança que deriva de uma sociedade que diz adeus à ditadura e abraça a democracia, e que na ressaca de muitos anos de tirania se refugia nos heróis improváveis nados e criados por alguma comunicação social.

Cañas, Zarco, Tere e companhia, são personagens que traçam tangentes entre individuo e sociedade, entre a realidade e a ilusão social e “As Leis da Fronteira” é um acutilante livro que reflete uma história de paixões, enganos, traições e vinganças.

In Rua de Baixo

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