quarta-feira, 18 de junho de 2014

Mão Morta – “Pelo Meu Relógio são Horas de Matar”

Teoria do Caos



1984. Joaquim Pinto está em Berlim e assiste a um concerto dos Swans. Na ressaca do evento, Harry Crosby, dono do baixo da banda norte-americana, diz ao português que tem cara de baixista. Pinto segue as indicações do músico e compra um baixo. Pouco depois, na companhia de Miguel Pedro e Adolfo Luxúria Canibal, funda uma banda.

1988. Essa banda lança o primeiro disco. Um EP de seis músicas. Entre elas figuravam “E Se Depois”, “Oub’lá” ou “Aum”. O rock visceral combinava com uma acutilante poesia, onde a urgência urbana se miscigenava com um ambiente negro. Viviam-se os últimos anos da década de 1980 e na católica Bracara Augusta despontava um interessante movimento musical, “seduzido por um redopio embriagado de vertigem”. Mas, ao contrário da letra de “Até Cair”, essa banda logrou vencer a passagem do calendário, com maiores ou menores acidentes de percurso.

2014. Quatro anos depois de um menos inspirado e algo kitch “Pesadelo em Peluche”, eis que essa banda, hoje sexteto, faz chegar aos escaparates “Pelo Meu Relógio são Horas de Matar”, um disco cuja filiação se centra na crise económica, social e de valores que vigora num país que faz parte de uma Europa à beira do colapso. Essa banda são os Mão Morta, um coletivo que sempre pautou pela diferença e que tem como figura de proa Adolfo Luxúria Canibal, um Homem das letras e das leis, um poeta urbano que busca inspiração nos movimentos situacionistas e surrealistas e tem como maior arma de “combate” a metáfora, figura de estilo que neste álbum assume características ímpares, onde a violência e a rebeldia se contrapõem face a uma certa apatia e inércia social da pessoa enquanto membro de uma sociedade entregue a uma geração de políticos sem carisma e dependentes da ajudas em triplicado.

Musicalmente, este disco surge como um corte face ao já referido “Pesadelo em Peluche” e faz recuar até aos tempos de “O.D., Rainha do Rock & Craw”, nomeadamente aos ecos de composições como “Anarquista Duval”, “Charles Manson” ou “O Divino Marquês”, ainda que essa comparação esteja mais associada ao ambiente conceptual do que sonoro, com exceção de “Nuvens Bárbaras” ou “Hipótese de Suicídio”.

Em “Pelo Meu Relógio são Horas de Matar” fala-se da perda da individualidade, de desesperança, de medo do futuro e de algum retrocesso político e social, sendo a minimal “Os Ossos de Marcelo Caetano” um bom exemplo dessa realidade. Foi mesmo essa a música escolhida pela banda para figurar no vídeo de promoção do disco. A alusão à violência e à revolta tornou essa peça num manifesto que fala de gente que não gosta de si, que tem medo de amar.

As guitarras dançam com o baixo, o piano torna o ambiente mais denso, a voz, cavernosa, confere dramatismo, os coros lembram fantasmas. Logo na primeira faixa do disco, “Irmão da Solidão”, somos envolvidos por uma narrativa poética cujo sublinhado sónico da guitarra tem na bateria dolente um precioso aliado. Os coros adensam uma tensão que não procura a explosão, mas sim a dormência, a letargia.

Adolfo Luxúria Canibal diz que o corpo precisa de “divertimento sensorial” mas alerta para a perda do sentido crítico do ser social. A opinião dá lugar à tese do suicídio metafórico como libertação e “Hipótese do Suicídio” é sinónimo de rock puro e duro, onde a guitarra fura o arrastar sufocante do baixo opressivo.

Num ápice, aos primeiros acordes de “Nuvens Bárbaras”, sentimos a vertigem fantasmagórica dos tempos de “Muller no Hotel Hessischer Hof” e entramos numa tour de force de oito minutos de beleza pura, onde ruído e silêncio partilham um espaço comum, onde laivos elétricos convivem com a pureza clássica de um piano. Canibal declama. A esperança é fruto do passado mas a música vence os nossos ouvidos, que abraçam esta sonoridade arrastada, condenada, fruto de um veneno viciante que se entranha mesmo antes de se estranhar. Um dos melhores momentos do disco.

Como se de um livro se tratasse, os Mão Morta erguem personagens entregues a si mesmas numa negra elipse metafórica. O drama surge nas linhas e entrelinhas cantadas e tocadas. “Pássaros a Esvoaçar” traz à tona o drama do desemprego, de noites que são dias. O ambiente é sussurrante, pesado. A guitarra seduz pela hipnose, bateria e baixo sustentam esse clima. Os Mão Morta estão em grande forma e os nossos ouvidos exultam de felicidade.

“Preces Perdidas” e “De Coração Acesso” são duas faces de uma mesma moeda. Se no primeiro momento sobressai um perfil sintético, depois a orgânica pesada do rock vence por knock-out. A seguir, “Mulher Clitóris Morango” faz um apelo, sem medo, à sublevação popular, à luta, com Adolfo Luxúria Canibal a associar essa causa a um sentimento forte, como é o desejo carnal aqui entendido também como uma catarse simbólica.

“Os Ossos de Marcelo Caetano”, single que serve de promoção ao disco, assenta no espetro minimal de uma única frase repetida até à exaustão. Adolfo avisa que os restos mortais do antigo dirigente regressaram a S. Bento, a política está em retrocesso. A tese é fundamentada com uma mescla musical que funde momentos litúrgicos de um órgão aliado a uma voz que rapidamente cede o seu lirismo a um maquinal diálogo entre máquinas e elementos elétricos.

Com um clima mais pop, “Histórias da Cidade” é uma das composições mais melódicas de “Pelo Meu Relógio são Horas de Matar”, onde o baixo e a bateria pautam o ritmo que não se esquece da familiar guitarra. No ocaso do álbum está “Horas de Matar”, um exercício mais pesado, dolente e arrastado, que mostra uma solidariedade musical e poética.

A música acaba, mas o disco não termina aqui. A vontade de voltar a carregar no play, de voltar ao início, ao meio, aonde quisermos, subsiste. Já o dissemos: os Mão Morta estão em grande forma e a sua música ganha solidez com a agressividade latente, seja ela metafórica ou não. Num cenário de crise emergem, por vezes, faróis de (des)esperança. Este disco é um deles. Deixemos que a sua luz, por vezes negra, muito negra, nos ilumine a alma. Sintamos os ventos animais.

Alinhamento:

01.Irmã da Solidão
02.Hipótese de Suicídio
03.Nuvens Bárbaras
04.Pássaros a Esvoaçar
05.Preces Perdidas
06.De Coração Acesso
07.Mulher Clitóris Morango
08.Os Ossos de Marcelo Caetano
09.Histórias da Cidade
10.Horas de Matar

Classificação do Palco: 9/10

In Palco Principal

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