quarta-feira, 7 de maio de 2014

“Vida Activa”
de Susana Nobre

A existência em suspenso



A revitalização social é uma das tarefas de um Estado que em tempos de assumiu de providência. Nas últimas quatro décadas, que tem no seu início a fronteira política, económica e social que foi desenhada com o 25 de abril de 1974, Portugal modificou o seu perfil.

Depois de alguma insistência lográmos entrar na Comunidade Económica Europeia e o futuro adivinhava-se risonho. Uns diziam que estávamos no “comboio da frente” da Europa, outros entendiam essa metáfora como um adiar de uma eventual perda de soberania e independência financeira face a países europeus de outras valias.

Entretanto, os fundos europeus chegavam para (quase) tudo. O país apostava tudo na sua revitalização, a informática entrava em força mas aquilo que os bites e bytes não conseguiam prever era o descalabro que se assistiria com o decorrer do século XXI. Ousava-se sonhar com novos aeroportos e linhas férreas de alta velocidade. Mais uma vez, o sonho tendia a ser mais rápido que a realidade que seguia em velocidade de um cruzeiro à deriva. A crise chegaria pouco depois. Mais uma vez aos portugueses pedia-se para apertar os cintos.

Numa situação onde a concorrência interpessoal passou a ser determinante no que toca à afirmação profissional e até pessoal, o governo português, através do Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP), criou em 2001 um programa que viria a ser conhecido como Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências (RVCC), que tinha por fim fazer crescer o nível de qualificação e empregabilidade de adultos ativos, afirmar a importância da formação contínua e valorizar as aprendizagens adquiridas ao longa da vida.

Mais tarde, os Centros RVCC seriam alvo de restruturação e passariam a designar-se por Centros de Novas Oportunidades. Nesses locais, chegavam candidatos que visavam cursos de formação de adultos. Estavam sujeitos a uma entrevista, realizam testes escritos de forma a serem identificadas as suas “competências” em termos de escolaridade e depois formavam grupos que frequentam uma série de sessões.

Esse novo regresso à “escola” assumia-se sob a forma de várias disciplinas entre as quais se destacava “Histórias de Vida”, um espaço que levava o aluno a realizar um dossier narrativo da sua vida, uma espécie de portefólio que superava em emoção e pertinência qualquer exercício matemático ou redação. No final da ação, os alunos recebiam certificados que numa primeira fase equivaliam ao 9º ano de escolaridade e, a partir de 2007, ao 12º ano.

Com o objetivo de realizar um filme sobre esta temática, Susana Nobre começou em 2006 a frequentar Centros de Novas Oportunidades na Zona da Grande Lisboa, região bastante afetada pelo desemprego. Dessa envolvência surgiu a possibilidade de integrar a equipa do Centro de Novas Oportunidades do Centro de Formação Profissional de Alverca assumindo o papel de profissional de reconhecimento de competências.

A realizadora que na altura contava já com a autoria de filmes como “As nadadoras” e “O Que pode um rosto”, conseguia assim uma forma privilegiada de fazer um filme documental sobre uma complexa realidade. Depois de muitas horas a filmar episódios quotidianos da sua atividade, Susana Nobre chegaria a “Vida Activa”, um extraordinário exercício documental que simboliza a epifania de milhares de vidas que, invariavelmente, tiveram, quase todas, por fim o desemprego por triste sina.

Ao longo de 90 minutos somos transportados para realidades nuas e cruas, sem rede, de pessoas que sentem a vida interrompida depois de dezenas de anos no mercado de trabalho. Muitas delas saíram de casas dos pais com 11, 12 e 13 anos para começar uma nova vida e ganhar o pão que faltava junto dos seus.

Em “Vida Activa” as estrelas, sem as devidas aspas e com a nossa maior vénia, são as pessoas que aceitaram dar a cara, que possibilitaram um processo de certa forma voyeurista e completamente transparente.

Ao longo do documentário, são muitos os sentimentos que nos assolam. Há tristeza, incompreensão, raiva e até quase uma sensação de rendição, mas estas pessoas não deixam de lutar, exultando a capacidade de sacrifício, o orgulho das tarefas que exercem ou exerciam e uma humildade e simpatia comoventes. A tensão está presente nos seus rostos, nas suas mãos, nos seus olhos.

Longe do propósito biográfico, Susana Nobre, construiu um complexo quebra-cabeças documental cuja montagem não tende a seguir um fio condutor, um guião, mas que no seu conjunto tende a ser coerente, verdadeiro, pois, no fundo, estamos perante histórias de vida de gente que integra o povo que quer trabalhar, uma classe que deixou de ser operária mas que não perdeu o orgulho das suas raízes.

Sempre com a devida autorização da pessoa filmada, Susana Nobre mostra entrevistas, momentos das sessões de formação, relatos diversos que atingem a dimensão de um “diário existencial” que tem o auge nos já referidos dossiers elaborados na disciplina “História de Vida”. O arquivo de imagens em “Vida Activa” é outra das formas de contextualização brilhante presentes neste documentário que tem o mérito de tentar entender a crise que hoje assola este país sob as perspetivas de quem é despedido mas também de quem se vê na obrigação de despedir.

Espelho de um país cinzento, “Vida Activa” é um documentário autêntico que não se coíbe de ser duro, direto e cru quando tem de o ser mas que consegue resgatar momentos onde a esperança supera o estado moribundo e depressivo de gente que sofre na pele a ingerência de outros.

Portugal mudou nas últimas décadas. A situação de pleno emprego dificilmente voltará e hoje trabalha-se a prazo, curto. Ter emprego passou a ser um privilégio e o despedimento tornou-se na solução “óbvia”. Alguém à beira da reforma causa “inveja” por ter conseguido um percurso laboral que hoje é quase uma utopia. A emigração cresceu, o desemprego também ainda que se tente mascarar esse facto com as sucessivas chamadas por parte do IEFP aos desempregados inscritos nos Centros de (des)Emprego perante cursos “Vida Ativa”.

É este o país que, por hora, temos e é o seu reflexo que Susana Nobre transmite de forma exemplar em “Vida Activa”, documentário que esteve patente no festival DocLisboa e chega esta semana à sala do Cinema City Alvalade. Porque a melhor ficção cinematográfica é a própria realidade.

In Rua de Baixo

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