terça-feira, 22 de abril de 2014

Dead Combo - "A Bunch of Meninos"

Made in Portugal



Ao longo das últimas três décadas, a música portuguesa viu nascer projetos que marcaram, definitivamente, o seu perfil, através de uma sonoridade que nos transporta para dentro de um universo particular, e ambivalente, ao qual ousamos chamar “portugalidade”.

Se recuarmos até ao final da década de 1980 e inícios de 1990, é pertinente lembrar a génese de bandas como, por exemplo, os Madredeus ou Sitiados, que com discos como “Os Dias da Madredeus” ou “Sitiados”, respetivamente, foram sinónimo de novidade. O seu som, apesar de resultar de uma criação idealizada em formas e conteúdos diferenciados, trazia inerente o fantasma do “fado”, aqui entendido como a materialização de um Portugal em forma de música. Se à banda de Pedro Ayres de Magalhães e Teresa Salgueiro estaria associado um elegante espetro de poesia e sons clássicos, João Aguardela e comparsas faziam da música um caldeirão festivo envolto de sarcasmo, boas vibrações e uma capacidade brilhante de auto caricatura de um povo à beira-mar plantado.

Mais tarde, já nos anos 2000, outras bandas, seguindo trajetos também eles muito colados à pele dessa coisa de ser português, conseguiram deixar a sua marca no panorama musical nacional. Falamos dos Deolinda e, claro está, dos Dead Combo.E é da dupla formada por Tó Trips e Pedro Gonçalves que nos chegou recentemente “A Bunch of Meninos”, o quinto registo áudio de uma banda que consegue reinventar o seu som a cada disco, de forma tranquila e firme, mantendo a sua identidade, e que gerou um (crescente) culto que já os levou a serem convidados de Anthony Bourdain no seu programa “No Reservations” ou a atuar em Cannes, aquando da estreia de “Cosmopolis”, de David Cronenberg.

Reza a lenda que os Dead Combo nasceram depois de uma conversa entre Tó Trips e Pedro Gonçalves no Bairro Alto, a propósito da edição de um disco de homenagem a José Afonso. O muito bem recebido primeiro disco da banda seria “Vol. 1”, gravado em 2004, mas a afirmação dos Dead Combo surgiria através de “Lusitânia Playboys” e “Lisboa Mulata”, registos datados de 2008 e 2011.

Cerca de três anos depois do último registo, eis que temos o prazer de voltar a ouvir a magia de Trips e Gonçalves, através de um álbum que mescla territórios sonoros tão “distantes” quanto o são o Fado, os tiques latino-americanos ou deliciosas melodias nascidas do universo western. Independente da sua inspiração geográfica, a música dos Dead Combo é como um regresso ao lar, a uma casa que é nossa por direito, que nos faz sentir confortáveis e bem-vindos.

E é essa sensação de bem-estar que nos entra alma adentro ao ouvirmos, por exemplo, os acordes de “Povo que Cais Descalço”. De perfil sedutoramente elétrico, Tó Trips e Pedro Gonçalves fazem as cordas soar como o bater de um coração tranquilo. Fecham-se os olhos e sente-se Portugal, a nossa pátria sonora. Antes, em “Waiting for Nick at Rick’s Café” – que surgiu no seguimento de um pedido da banda, infelizmente rejeitado, a Nick Cave, para que o australiano participasse neste disco – o álbum abre em ambiente doce e desarmante, através de uma cadência “fadista”, onde os instrumentos dialogam entre si como velhos amigos que partilham um segredo.

Para além das guitarras, doule bass, piano e melódica, instrumentos tocados por Trips e Gonçalves, “A Bunch of Meninos” está mais rock e conta com a ajuda da percussão de António Sérginho e da bateria de Alexandre Frazão. Essa valorização sonora salta ao ouvido em faixas como a gingona “Arraia”, a mais mexida “D. Emília”, a “lynchiana” “Mr. Snowden’s Dream” ou, no momento mais rockeiro de todo este álbum, a faixa-título, “A Bunch of Meninos”, única composição que junta a participação da dupla convidada.

Mas são, como seria natural, as guitarras que mais brilham neste disco e, em momentos como no entusiástico “Miúdas e Motas” e no mais blusy “Waits”, as cordas ganham acutilância face à ajuda de sonoridades como a melódica ou a bateria. Ainda que em toadas mais calmas e soturnas, as cordas dedilhadas neste disco assumem a forma de escadaria para um qualquer paraíso sonoro, tal como no maravilhoso tema “Zoe Llorando”, um dolente lamento que arrepia pela sua excelência. O toque nas cordas e a respiração suave de quem as toca tornam esta composição numa das canções mais humanas da carreira desta dupla, que opta por encenar a sua presença através das figuras de um cangalheiro e um gangster. Também envolta num ambiente melodramático, “B.Leza” surge como o exemplo máximo da harmonia entre guitarras (elétricas e acústicas), no caso sublinhado pelo som do piano.

“Dos Rios”, em ritmo descaradamente latino, é outra experiência à la Dead Combo e inicia e termina com vocalizações de Pedro Gonçalves, descambando num alegre convívio entre ambientes elétricos e acústicos, e serve como elemento simbiótico entre as bipolaridades estéticas da banda, que se adensam na faixa final do disco, “Hawai em Chelas”, um hino à luz de um disco que vagueia entre a obscuridade dormente e o brilho intenso.

Depois de uma década de excelentes discos e concertos que encantam através de uma simplicidade desarmante, os Dead Combo são uma das mais interessantes bandas deste imenso Portugal sonoro. “A Bunch of Meninos” é a confirmação, mais rock, entre a realidade e o sonho, de uma dupla dona de um perfil ímpar, de uma alma que extravasa fronteiras, sejam elas políticas, geográficas ou musicais. Um disco para ouvir, dançar e guardar. Com orgulho.

Alinhamento:

1 Waiting For Nick At Rick’s Café
2 Povo Que Cais Descalço
3 Arraia
4 Miúdas E Motas
5 Waits
6 Zoe Llorando
7 B.Leza
8 Dona Emília
9 A Bunch Of Meninos
10 Dos Rios
11 Welcome Simone
12 Mr. Snowden’s Dream
13 Hawai Em Chelas

Classificação do Palco: 9/10

In Palco Principal

Sem comentários:

Enviar um comentário