quarta-feira, 23 de abril de 2014

“A Sétima Porta”
de Richard Zimler

O círculo dos esquisitos



A viver no Porto desde o início da década de 1990, o norte-americano Richard Zimler é um dos escritores mais apreciados pelos leitores portugueses. Com uma obra que se conta por uma dezena de romances, duas coletâneas de contos e um par de livros para gente pequena, Zimler traz-nos agora “A Sétima Porta” (Porto Editora, 2014 – nova edição), um livro apaixonante que nos transporta até à Alemanha da década de 1930, aquando da afirmação política e ideológica do nacional-socialismo.

Segundo o autor, esta obra foi consequência de um achado levado a cabo numa cave de Istambul, em 1990, que se revelaria em sete manuscritos do século XVI cujo autor foi o cabalista Berequias Zarco, uma das principais personagens do seu muito aclamado romance histórico “O Último Cabalista de Lisboa”.

Se um desses documentos tinha como tema central o pogrom de Lisboa – acontecimento também conhecido como o “Massacre de Lisboa de 1506”, um movimento popular que dizimou centenas de judeus por os considerar responsáveis pela peste que assolava o país, ato “patrocinado” pela Inquisição –, que Zimler utilizou como cenário do já referido romance, aos outros seis manuscritos estava destinado serviram de base para este “A Sétima Porta”.

Com a Berlim da década de 1930 como cenário, Sophie Riedesel é uma jovem cristã de catorze anos que vive no seio de uma família de classe média. O seu pai, um engenheiro comunista, luta pelos ideais marxistas e, nos tempos “livres”, partilha uma relação acomodada com a sua mulher e Hansi, o mais pequeno membro da família que se manifesta como uma “criança distante”.

Fã confessa de cinema e apaixonada pela pintura, Sophie desenvolveu uma forte relação de amizade com Raffi, antigo baby-sitter da família e apaixonado por egiptologia, e Rini, colega de turma e a sua melhor amiga. Coincidentemente, são ambos judeus. Tónio, alemão de gema, é outra das suas companhias favoritas e, desta proximidade, nasce uma relação mais densa e apaixonada.

Tudo corre normalmente até que o partido Nacional-Socialista chegar ao poder e, com isso, paulatinamente todas os ideais, certezas, princípios e sonhos acabam por desvanecer. O seu pai vê-se obrigado a aderir à causa nazi de forma a “salvar” a família, Hansi adensa a sua condição especial enquanto o seu autismo se torna cada vez mais evidente e a sua mãe é atingida pela doença.

Incompreensivelmente, Sophie vê-se privada da sua vida de uma forma que nunca imaginou. O antissemitismo propagandeado por Goebbels torna o mais normal cidadão numa espécie de autómato e os judeus, ciganos e “disformes” começam a sentir na pele o ostracismo nazi.

Como forma de catarse, Sophie estreita laços de amizade com Isaac, um velho alfaiate judeu descendente de Berequias Zarco, que tem em sua posse os já referidos manuscritos e está determinado em descobrir o seu propósito. Ciente da aliança entre Hitler e Estaline, Isaac sente que está iminente a profecia apocalíptica presente nos manuscritos e a sua demanda passa a ser a descodificação dos textos cabalísticos medievais, de forma a salvar a humanidade.

Isaac lidera também um grupo que se autointitula como “O Círculo”, um grupo composto por pessoas com deformidades diversas que são uma das maiores ameaças para a sociedade ariana. Entre os membros do Círculo contam-se anões, surdos-mudos, uma mulher que sofre de gigantismo e outro tipo de pessoas cuja diferença face à normalidade é alvo de perseguição por parte de uma sociedade que encontra, na esterilização dessas pessoas, uma forma de manter o seu ideal de perfeição intacto.

Quando alguns membros de “O Circulo” começam a aparecer mortos, Sophie embarca numa perigosa jornada que a leva enfrentar algumas das maiores ameaças que um ser humano pode sentir, levando-a inclusivamente a avaliar-se enquanto ser humano.

A relação entre Sophie e Isaac transforma-se e, enquanto o alfaiate lhe abre as portas do judaísmo e da Cabala, a adolescente transforma-se numa mulher sexualmente ativa que se apoia numa relação a três, que serve de ponte entre a pouca sanidade que lhe resta e um mundo que deixou de ser racional.

Com “A Sétima Porta”, Zimler embrenha o leitor num universo marcado pelo mistério e misticismo (ainda que longe da definição de “thriller” como a chamada de capa assim o define) e torna este livro num dos mais pertinentes exercícios sobre um dos períodos mais negros da história recente. Através de um lado metaforicamente delicioso e com uma narrativa que ganha balanço com o passar das páginas, o autor de “O Último Cabalista em Lisboa” desenvolve uma trama recheada de personagens cujos traços psicológicos são de uma excelência apenas ao alcance de poucos.

Neste livro é feita a exploração da maturidade de uma adolescente forçada a ultrapassar uma luta interna onde o bem e o mal não encontram definições em si mesmas. A dor da perda, seja física ou psicológica, deixa cicatrizes na alma, ainda que a existência passe a ser sinónimo de uma “mera” corrida de obstáculos.

“A Sétima Porta” é uma experiência de acutilante ferocidade, cujo começo em velocidade de cruzeiro rapidamente acelera dentro das nossas cabeças. Mais que um livro, estamos perante uma experiência de vida que mescla alegria, desespero, amor, raiva e sentimento de pertença. No fundo, este livro é uma leitura adulta repleta de significados culturais, que vão desde a cinematografia glamorosa de Greta Garbo até ao expressionismo de Robert Weine – onde a referência ao filme “O Gabinete do Dr. Caligari” encaixa que nem uma luva neste contexto –, passando pela efabulação de uma sociedade vertiginosa à beira do precipício.

In Rua de Baixo

Sem comentários:

Enviar um comentário