terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Cristina Branco
“Idealist”

Belíssima Trindade



Em algumas entrevistas a propósito do lançamento de “Idealist”, Cristina Branco afirma que esta edição – uma box com três discos: “Fado”, “Poemas” e “Ideal” – é um documento que marca alguns dos melhores momentos da sua carreira, uma forma de destacar temas que, segundo a cantora, sobressaíram dentro dos seus 13 álbuns, lançados ao longo de 17 anos de carreira. A felizmente extensa lista de temas que integram esta revisitação de uma das fadistas, ou cantoras, mais interessantes da sua geração leva-nos numa agradável viagem ao passado, relembra um alegre presente e aponta ao futuro.

Fã incondicional de Amália, nome que lhe fez nascer o amor pelo Fado, Cristina Branco traçou um percurso diferente daquilo que é o habitual “circuito fadista”. Sem ter cantado numa casa de Fado, Cristina editou o primeiro disco por terras holandesas e logo em formato “ao vivo”. Desde esse registo de 1997, a cantara ribatejana tem construído uma sólida e segura carreira e, ao longo dos anos, tem encantado o ouvido de muitos com temas como “Sete pedaços de vento”, “Os teus olhos são dois Círios” ou “ Longe do sul”, três canções presentes neste “Idealist”.

Esta compilação está “dividida” em três momentos. Se o primeiro disco, “Fado”, divide temas em nome próprio com outros de alguns dos «monstros» sagrados da mais nacional das canções portuguesas, “Poemas”, o segundo tomo, tem uma alma “bipolar”, pois, entre fados como “Musa” ou “Ninfas”, temos peças musicais mais perto do formato canção, como o são “Soneto da Separação”, “L’Invitation au voyage”, “Case of You” ou “No comboio descendente”.

Neste segundo disco, tal como o seu título indica, são os poemas que mais ordenam. De Joni Mitchell a Chico Buarque, passando por gente como Sofia de Mello Breyner, David Mourão Ferreira, Charles Baudelaire, Fernando Pessoa e José Afonso, Cristina Branco “apropria-se” da intensidade das palavras e faz a ligação com a música de forma sublime. Sente-se a alma na voz, nas letras, na música.

O terceiro disco, “Ideal”, faz outra ronda pelo reportório de Cristina Branco, ainda que o mais recente “Alegria” esteja presente de forma ativa, com temas como “Alice no país dos matraquilhos”, “Construção” e “Cherokee Lousie”, canções cuja poesia deve a sua autoria a Sérgio Godinho, Chico Buarque e Joni Mitchell. “Margarida”, tema retirado de “Kornos”, que traz à memória um dueto com Jorge Palma, “Porque me olhas assim”, ou “Não há só tangos em Paris”, são outros momentos de iluminado brilhantismo, num disco que termina, de forma sublime, com “Avec le temps”, um original de Leo Ferré.

Entre recordações e novas roupagens, “Idealist” revela ainda três novos momentos. Se dois deles são originais - falamos de “Fado de partilha” e “Se fores, não chores por mim” -, “Na rua do silêncio” é um original fado Estoril e a ideia para esta interpretação nasceu de um conversa entre Cristina Branco e Carlos do Carmo.

Conhecida por possuir uma linguagem e interpretação muito própria do Fado, aos 40 anos Cristina Branco está numa das suas melhores fases enquanto cantora e este “Idealist” serve como cartão-de-visita daquilo que a “menina de Almeirim” já fez e quer fazer. São 58 temas, três discos, mas podiam ser mais. Podia ser o que Cristina quisesse, pois dela apenas se espera o melhor e esta compilação prova que estamos perante uma das mais incisivas e bonitas vozes portuguesas. Se um disco saberia a pouco, dois seria bom, mas três é o ideal…

Alinhamento:

CD1 “Fado”
1. Trago fado nos sentidos
2. Fria claridade
3. Sete pedaços de vento
4. Fado perdição
5. O descobridor
6. Fado do mal passado
7. Fado
8. Há palavras que nos beijam
9. Gaivota
10. Trago um fado
11. Na rua do silêncio
12. Disse te adeus e morri
13. Não é desgraça ser pobre (fado menor do porto)
14. Os teus olhos são dois cirios
15. Meu limão de amargura
16. Cansaço
17. Água e mel
18. Se não chovesse (fado suplica)
19. Maria lisboa
20. Meu amor e marinheiro

CD2 “Poemas”
1. Fado da partilha
2. A case of you
3. O meu amor
4. Quando julgas que me amas
5. Canção de embalar
6. Reflexão total
7. Ninfas
8. Musa
9. Não oiças a minha voz
10. Toada em realejo
11. Comboio descendente
12. L'invitation au voyage
13. Talvez
14. Tango
15. As certezas do meu mais brilhante amor
16. As mãos e os frutos XVIII
17. Cantigas as serranas
18. Aspiração
19. Assim que te despes
20. Soneto de separação

CD3 “Ideal”
1. Se fores, não chores por mim
2. Bomba relógio
3. Rosa
4. Margarida
5. Não há só tangos em paris
6. Alice no país dos matraquilhos
7. Histórias do tempo
8. Era um redondo vocábulo
9. A Laurindinha
10. Porque me olhas assim
11. Ai vida
12. Cherokee Louise
13. Longe do sul
14. Navio triste
15. Abalara
16. Construção
17. Alfonsina y el mar
18. Avec le temps

Classificação do Palco: 8/10

In Palco Principal

“Tempo para Falar”
de Helen Lewis

A perigosa dança entre a vida e a morte



Holocausto. Só a palavra assusta, faz lembrar o terror, o medo, a perda da razão, a desumanidade, a terrível verdade vivida por uma minoria. Aconteceu há apenas algumas décadas mas, a cada relato, a cada experiência vivida e transmitida nos perguntamos: Porquê?

Muitos livros já foram escritos sobre as provações que passaram judeus durante a Segunda Grande Guerra, mas cada novo livro sobre o tema revela outros ângulos de um sofrimento que, incompreensivelmente, alguns tentam ignorar e até negar.

Escritores como Primo Levi e Imré Kertész são porta-vozes da degradação e humilhação que os judeus passaram, desde a sua expropriação da condição de seres humanos até aos tormentos sofridos nos “campos de trabalho”, como Auschwitz ou Sobibor, mas entretanto figuras “anónimas” ganharam coragem para partilhar as experiências sobre o terrorismo psicológico e físico praticado pelos nacionais socialistas do III Reich.

Helen Lewis, uma checa que um dia desafiou a família ao candidatar-se ao curso de bailarina na Escola de Dança de Milca Mayerova, é uma dessas vozes. Viu a vida interrompida pela invasão Nazi e, quase sem entender como, viu-se com uma estrela amarela cozida na manga do casaco e deportada para o campo de concentração de Terezín, a cerca de 60 quilómetros de Praga. O seu “crime”: ser judia. O seu “julgamento”: deportações que iniciam com reuniões de embarque semelhantes a imagens do Antigo Testamento. A sua “pena”: a solidão e o sofrimento.

Em “Tempo para Falar” (Editorial Planeta, 2013), Helen Lewis relata a sua experiência enquanto cativa das SS mas, ao contrário de muitos livros sobre este – infelizmente – inesgotável tema, fá-lo com um estilo limpo, factual e humano que, sem nunca esquecer o pesadelo, revela um relato onde se encontram ecos de humanidade quando tal parecia há muito perdido.

Nas palavras de Lewis não se vislumbram traços rancor ou auto comiseração, mas sim uma vontade de tentar “reviver” o inimaginável através de uma desarmante e cativante lucidez e honestidade. Esqueçam noções como “justiça” ou “decência” mas esperem um excelente livro.

Nas páginas de “Tempo para Falar” fala-se de algumas ações inesperadas entre pares, réstias de humanidade através da simpatia de um oficial alemão, seja ele um “fantasma” bondoso ou um ex-professor que era obrigado a disfarçar a sua solidariedade sob risco de perder a vida por estar em contacto com “seres inferiores”. Relatam-se experiências limite com kapos ou durante uma selektion que pode ser considerada um sucesso com alguma felicidade ou com a astúcia de um passo para o lado.

Depois de deixar de se ser uma pessoa e existir com um “BA 677” tatuado, tudo pode acontecer. E, nessa altura, o instinto de sobrevivência desperta. Uma ligeira inclinação da concha da sopa pode ser a diferença entre a vida de a morte, a doença assume-se como uma salvação temporária e uma paixão de vida – no caso de Helen a dança – pode ser sinónimo de mais horas, dias, semanas, de vida ou algo parecido com isso.

Ao folhear este livro passa pelo leitor uma estranha sensação de “conforto” por não entender o tipo de provações registadas em “Tempo para Falar”, e tal incomoda pois a todos parece impossível admitir que tudo aquilo aconteceu num Mundo dito moderno e evoluído.

Um livro aconselhado a todos, “Tempo para Falar” é uma obra que não deixa ninguém indiferente e demonstra a extraordinária coragem e força interior do ser humano perante situações limite. Não se trata de ficção: é real, é histórico, é horrível. Mas, graças a magníficas pessoas como Helen Lewis que honram a palavra humanidade, vamos esperar que a História não se repita. A bem de todos.

In Rua de Baixo

“Henderson’s Boys – A Arma Secreta”
Robert Muchamore

Espionagem, versão teenager



Britânico natural de Islington, Robert Muchamore é hoje um dos mais respeitados autores de livros de aventuras em forma de espionagem para adolescentes. Depois de várias experiências laborais e no seguimento de mais de uma década como detetive privado, Muchamore decidiu dedicar-se à escrita.

Verdadeiramente empenhado nos enredos dos seus livros, tem por hábito fazer estudos meticulosos sobre as matérias que quer aprofundar, demorando meses na elaboração de cada obra. Herdou este método profundo da anterior profissão de detetive e, essencialmente, para não desapontar os seus mais acérrimos fãs – os seus sobrinhos – que, em tempos desgostosos e com o que andavam a ler, desafiaram o tio a criar algo diferente.

Dessa pequena provocação nasceu a série CHERUB, um conjunto de fantásticas aventuras que vão encantando jovens um pouco por todo o mundo e que, só em Portugal, vendeu já mais de 370 mil exemplares.

Curiosamente ou talvez não, para além dos jovens que seguem atentamente a carreira do autor de livros como “Um Dia Negro” e “A Evasão”, são os pais que também sublinham a importância de Muchamore, pois o britânico é sinónimo da – infelizmente parca ainda que gradual – relação intima entre a juventude e a literatura. Segundo responsáveis da Porto Editora, são muitos os pais que perguntam quando se editam mais livros deste autor, agradecendo aquilo que o mesmo faz pelo despertar da consciência literária dos nossos Homens de amanhã.

No seguimento dessa convergência de vontades, eis que já se encontra nas livrarias “Henderson’s Boys – A Arma Secreta” (Porto Editora, 2014), mais uma fabulosa aventura da CHERUB que, neste capítulo, leva o leitor até aos primórdios das origens da organização que se assume como o braço juvenil do MI5 britânico.
Muchamore faz-nos recuar no tempo e no calendário até à Grã-Bretanha em meados de 1941. O governo prepara um exército secreto composto por agentes ultrassecretos que tem como missão trabalhos infiltrados de forma a conseguirem reunir informação e planear operações de sabotagem.

Entre os eleitos estão os agentes de Henderson, que vestem a pele de uma nova arma secreta: crianças, vítimas de guerra, que se preparam para o maior desafio de suas vidas. A missão é saltar de paraquedas para território inimigo, percorrer o país e ser mais inteligente que os adultos que os esperam do outro lado das linhas inimigas. Para aguçar ainda mais o mistério, oficialmente estas crianças não existem.

Se este “Henderson’s Boys – A Arma Secreta” é obviamente um livro muito aguardado pelos inúmeros fãs de Robert Muchamore, é também uma janela de oportunidade para aqueles que desconhecem a obra anterior do ex-detetive privado entrarem num mundo de aventuras ímpar que vicia a cada página.

In Rua de Baixo

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

“O Homem Sombra”
de Dashiell Hammett

Quem matou Julia Wolf?



Juntamente com Raymond Chandler e James M. Cain, Dashiell Hammett completa o trio sagrado da ficção “pulp” nascida do raiar do século XX. As suas novelas de caraterísticas bem intrincadas de tendências noir foram, e ainda o são, alvo de um imenso culto que tem em livros – posteriormente adaptados ao cinema – como “O Falcão de Malta” e este “O Homem Sombra” (Porto Editora, 2014) alguns dos seus mais altos expoentes.

Publicado originalmente em 1934 na revista feminina norte-americana Redbook, “O Homem Sombra” (Porto Editora) é o derradeiro romance escrito pelo autor norte-americano, conhecido por muitos como o fundador da moderna literatura policial. O livro, editado pela Porto Editora, integra um novo projeto que incluirá mais quatro obras do autor, assim como outros dois livros de Raymond Chandler.

Neste livro, Hammett convida-nos a entrar no mundo de Nick Charles, um ex-detective de origem grega conhecido pelas tendências alcoólicas tornado homem de negócios que, na companhia de Nora, se vê envolvido numa misteriosa trama que tem Nova Iorque como palco. O assassinato de Julia Wolf, secretária do excêntrico investigador e cientista Clyde Wynant – e ex-cliente de Nick -, está longe de ser um crime fácil de resolver.

Apesar de Nick querer passar incólume a tal acontecimento, a sua astúcia e sagacidade pelo mundo do crime leva-o, aos poucos, a deixar envolver-se por uma complexa cadeia de acontecimentos. No meio de toda esta confusão todos são suspeitos. Mimi, ex-mulher de Clyde, uma fervorosa mentirosa compulsiva está no topo das suspeitas. Os filhos do ex-casal, Gilbert e Dorothy, vivem vidas de fachada e tendem a ser encarados como meras peças de um puzzle familiar que tem na figura de Jorgensen, atual companheiro de Mimi, uma das suas maiores interrogações.

Os segredos misturam-se com as mentiras e surgem várias teias de deceção e ligações perigosas que acabam por revelar personagens que fingem personalidades e vidas diferentes mas que têm, como grande objetivo, resgatar a fortuna de Wynant. As ligações ao submundo de uma cidade louca com os “malefícios” da Lei Seca e que recorre a recônditos quartos de hotel ou a speakeasies para satisfazer as suas necessidades são o elo aglutinador de “O Homem Sombra”.

As mulheres de Hammet são por norma atraentes, manipuladoras e vingativas, e tanto a mais “discreta” Julia, a carente Dorothy ou a desafiante Mimi estão entre as mais ricas criações do escritor norte-american, tornando ainda mais interessante um livro repleto de diálogos acutilantes e recheados de um fino humor negro, ação e um conjunto de personagens idiossincráticas que mantêm viva esta magnífica estória de detetives da primeira à última página.

Misto de policial negro e comédia de costumes onde o álcool servido pela polícia não é muito apreciado, algumas mulheres são histéricas por convicção e conveniência, um speakeasy é um local certo para o marido esperar que a esposa regressa das compras e um uísque é a verdadeira panaceia para a insónia, “O Homem Sombra” é um maravilhoso exercício de uma escrita simples onde qualquer meio é desculpável para atingir o fim desejado.

In Rua de Baixo

Mler Ife Dada @ CCB

Espiral em Arco-Íris


 
Em 1984, uma banda oriunda de Cascais vencia a primeira edição do concurso de Música Moderna organizado pelo entretanto extinto Rock Rendez Vous. O prémio foi a gravação de um EP. Antes, essa banda havia gravado uma maqueta com uma faixa denominada “Nu ar”. Trinta anos passados, essa mesma banda regressa aos palcos, após um hiato de décadas. Um tempo demasiado longo, ditado por um desentendimento entre Anabela Duarte e Nuno Rebelo.

Os ecos da memória levam-nos para o espólio musical deixado pelos Mler Ife Dada. “Coisas que fascinam”, de 1987, e “Espírito invisível”, de 1989, ousaram desconstruir e dar cor a uma pop que em Portugal não encontrava paralelo. Misturavam música com imagem, muniam-se de armas surrealistas e exploravam sons do mundo. Eram uma espécie de objeto musical de codificações várias. Do jazz ao folk, do “fado” ao funk, da canção ao experimentalismo, das cores à sua ausência, do som ao silêncio.

Foi com a nostalgia e a saudade nas mentes que, aos poucos, o Grande Auditório do CCB se compôs, num dia dos namorados com muita chuva e expetativa. Um encontro de velhos amigos, unidos por um elemento comum: a música. Mas não uma música qualquer.

A génese deste “Pintar 1 Vai Vem 1984 - 2014” surgiu há alguns meses e desde setembro que Anabela e Nuno ensaiam na companhia dos camaradas de luta, de forma a recuperarem o tempo perdido. Na noite de sexta-feira, vocalista e guitarrista subiram ao palco do CCB, na companhia de Tiago Maia (em substituição do enfermo Francisco Rebelo) no baixo, Filipe Valentim nas teclas e Samuel Palitos na bateria. Mas, como de uma festa se tratava, os extremos do palco juntavam à celebração um trio de sopros e outro de cordas clássicas.

Seria, porém, a bateria a receber o primeiro elemento em palco, que descobria caminho por entre o negrume que faziam ecoar os primeiros acordes, no caso eletrónicos. A intensidade das palmas crescia à medida que o palco enchia. Anabela Duarte foi a última a entrar e, sorridente, agradeceu a devoção com uma tímida vénia. “Nu Ar” fazia-se ouvir e a coesão musical que emanava do placo levava para longe a ideia de tão longa paragem.

De preto trajada, ainda que com laivos de um branco especial, Anabela fazia de anfitriã face à chuva, e o ritmo gingão de “Pandra Bamba” trazia à sala, em tempo de invernia, ecos do calor dos trópicos. Em grande forma vocal, a senhora do microfone divertia-se, dançava e do palco saíam espirais musicais de um arco-íris radioso bem alimentado por acutilantes projeções animadas - ambiente confirmado em “Desastre de Automóvel em varão de escadas”.

Já com as turbinas bem quentes, “Erro de Cálculo” trazia a cena as teclas e os metais, que encontravam na voz sensual de Anabela, aqui acompanhada pelo coro de Nuno Rebelo, um bom porto. O espírito visível dos Mler Ife Dada, em toada jazzy, vibrava e levava os presentes a começar a abanar pés e almas. “Dance Music” elevou ainda mais o ritmo festivo e o ambiente era agora tomado pelo funk e pelo diálogo entre Anabela e Nuno. Aplausos, muitos.

A seguir, “O último mergulho” envolveu a atmosfera do Grande Auditório do CCB em momentos subaquáticos, em tom desconcertante e baladeiro, com a voz de Anabela a destacar-se através de um voo livre que vincou a sua mestria. Do silêncio para os ritmos mais esfíngicos foi um pequeno passo e foi impossível segurar os corpos ao ouvir os primeiros acordes de “À sombra desta pirâmide”, uma das mais geniais canções dos Mler Ife Dada. O exotismo do arranjo musical era notório e urgia deixar-se levar pelos laivos vocais que invadiam a sala.

Estamos, talvez, no auge de um concerto memorável e a sequência seguinte soube a um copo de água refrescante no quente deserto. A curta ausência de Anabela Duarte deixou o palco entregue a um número mágico de Nuno Rebelo, que serviu de maravilhosa introdução a “Sinto em Mim”, um exercício (perfeito) da desconstrução pop fadista, que os Mler Ife Dada fazem como ninguém. Os instrumentos entram de forma faseada e sequencial, a música cresce, as palmas dão sentido. Uma interpretação fantástica de uma música que é maior que a vida.

Com os nervos à flor da pele, o auditório recebe “Choro do vento e das nuvens”, deliciado, dedicado. Tal como a poesia da canção, também nós nos sentíamos sós com a exagerada ausência dos Mler Ife Dada. Quanto mais Anabela cantava, mais se adensava a saudade do seu (en)canto. Sentir música assim não é egoísmo, não é demais - é apreciar o sabor quente do regresso.

Ainda com as luzes envoltas de um certo negrume, Nuno Rebelo solicita a presença do silêncio, ao abraçar as cordas dolentes de um instrumento que faz anunciar a alma fadista de “Alfama”, outras das mais marcantes peças musicais da banda. De faca na liga, Anabela Duarte ataca o microfone, desalinha o seu fio, leva todos a percorrer Lisboa, com a fama do fado. No meio das muitas palmas, alguém grita: “Lindo!”.

Antes de “Valete (de copas)”, que recentemente foi alvo de uma revisitação, Nuno Rebelo aproveita para afinar as cordas da sua guitarra, e o resultado são minutos de puro deleite, com uma vincada participação dos metais e das cordas clássicas, que transmitem uma sensação ainda mais grandiosa da música. O espetro jazzy regressa como uma intensa interpretação de “L’amour va bien, merci”, uma das mais conhecidas canções da banda, que leva Anabela Duarte a uma dramática conversa telefónica ensimesmada.

De França para a Baviera o caminho é curto e “Festa da Cerveja” brindou o público com uma prestação elevada ao quadrado. Momentos depois, chega a vez de “Zuvi Zeva Novi”, o mais conhecido fragmento musical do grupo e que, envolto de uma teatralidade surreal, apoiada num deslumbrante jogo vocal, convida todos a dançar. O convite é aceite de bom grado e alguns levantam-se, dançam, sentem o momento.

Depois dos muitos aplausos e dos sorrisos vindos do palco, ouvem-se os primeiros sons do africaníssimo “Sio Djuzé”, que no original conta com a participação de Rui Reininho. A cumplicidade entre músicos é notória e Anabela e Nuno entreolham-se, satisfeitos. Antes da banda sair de palco, houve ainda tempo para um desconcertante e funk “Música do homem que anda (Walkman Music)”. Antes, foi tempo para “Xwe Xwe”. Tempo de intervalo, mas de curta duração.

Furando as muitas palmas, a banda regressa ao palco, desta vez com a vocalista envolta de uma capa escarlate, qual heroína de um filme sempre pop. “Ele e Ela”, um original de Madalena Iglésias, é invadido a meio do percurso pelos momentos free jazz de “Passerelle”, que leva Anabela Duarte a ensaiar um peculiar voo rasteiro. De volta à Terra, e num dos momentos mais introspetivos da noite, “Lossin Yelav…” transporta a audiência para um universo lírico envolto de uma brutal beleza, onde a voz vagueia, deliciosa, no ar. O final da festa fez-se com o regresso de “Zuvi Zeva Novi”, mas, desta vez, ninguém se atreveu a ficar sentado, e o CCB transformou-se numa entusiasta pista de dança com sabor aos anos 1980.

Décadas passadas, a música dos Mler Ife Dada continua a fascinar, não perdeu a sua magia e deixou um travo doce a saudade depois de tão prolongada ausência. Lisboa agradeceu o regresso, mas queria mais. É justo, é merecido e a ovação final de que a banda foi alvo sublinha a falta que a mesma faz. Aos seus membros fica o repto: regressem mais, por favor. A vossa ausência é masoquismo apaixonado.

In Palco Principal

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

“O assassino do aqueduto”
Anabela Natário

Aqui-d’el-Rei!



Diogo Alves é uma das maiores figuras do crime em Portugal. Conhecido como O Pancada ou o Assassino do Aqueduto das Águas Livres, este galego, nascido por terras de Santa Gertrudes, espalhou o pânico pela Lisboa da primeira metade do século XIX, servindo de fonte de inspiração à jornalista e escritora Anabela Natário para escrever “O assassino do Aqueduto” (A Esfera dos Livros, 2014), obra baseada em factos verídicos que dá a conhecer um romance policial de inspiração histórica altamente recomendável.

Depois de publicar “A cueca de bibelô” em 2007 e no ano seguinte assumir a responsabilidade de lançar uma coleção de seis volumes com 177 biografias de mulheres denominada “Portuguesas com história”, Anabela Natário regressa em 2014 com um livro que vai fazer as delícias dos amantes de policiais mas, também, de quem gosta de sentir a história de Portugal.

Com uma alma especial e uma linguagem que vai conquistando o leitor a cada página, “O assassino do aqueduto” tem como cenário a Lisboa revolta que viveu momentos de grande agitação social e política durante as primeiras décadas dos 1800 e que tinha, no calor do fado de faca na liga de Maria Severa, um dos seus grandes escapes.

Mas a figura central de “O assassino de aqueduto” é Diogo Alves, líder de uma quadrilha composta por dissidentes como Beiço Rachado, Palhares, Caminha e Celeiro, que tinha por hábito esperar incautos na passagem do Aqueduto das Águas Livres e roubar carteiras e vidas. O medo espalha-se pela cidade, ainda que sem rosto, e ninguém está seguro. Os corpos “suicidas” acumulam-se aqueduto abaixo, o assassino escapa impune.

Ambicioso e astuto, Diogo tem na taberneira Parreirinha uma estratégica aliada dos crimes e do coração, assumindo-se também mulher de armas que tem faro para escolher a vítima certa. Para além do comum cidadão, Alves e restante bando tem no assalto a casas de fidalgos o novo ganha-pão. Depois de um esforçado, sanguinário mas bem-sucedido roubo à casa do endinheirado doutor Pedro de Andrade, os maus da fita da fita deparam-se com uma série de problemas, tendo no seu encalce o juiz Carlos Bacelar.

Com um excelente enquadramento histórico e uma assinalável capacidade de ir revelando os acontecimentos de forma natural e assertiva, com o recurso a uma sábia apresentação dos personagens – por vezes valendo-se de curtos flashbacks -, Anabela Natário constrói um policial com pés e cabeça que se assemelha a um puzzle de crimes e assaltos, que revelam muito da sapiência para a arte da trapaça e do assassinato frio de Diogo Alves, o último homem a ser condenado à morte, pela forca, em Portugal.

Com honras de figurar no teatro anatómico da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, a cabeça decepada de Diogo Alves é mais que uma metáfora “viva” daquele que espalhou o terror pela capital há mais de 150 anos. É o troféu de uma caça ao homem que deu a vitória à justiça numa tarde de fevereiro de 1841, sendo também o ponto de chegada, ou partida, deste muito interessante e recomendado livro.

In Rua de Baixo

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Mler if dada em entrevista:

“Os Mler Ife Dada eram um laboratório de composição pop, uma forma de aprendizagem pessoal do ato de compor”



São uma das mais interessantes e inovadoras bandas portuguesas nascidas nos anos 80 e regressam aos palcos nacionais no dia 14 de fevereiro. Falámos com Nuno Rebelo e Anabela Duarte sobre o concerto no CCB, a recente revisitação de “Valete (de copas)”, sobre aquilo que motivou a dissolução da banda e, claro, sobre a possível existência de um futuro para os Mler if dada.

Palco Principal – Os Mler If Dada estão de regresso às atuações ao vivo, em jeito de comemoração dos 30 anos de carreira da banda. O que vos motivou a voltarem a pisar o palco? O facto de o Nuno Rebelo viver em Barcelona dificultou, de certa forma, um tão desejado - dizemos nós - reencontro?

Nuno Rebelo - Acho que a principal motivação foi a vontade de voltar a tocar aquelas músicas que, passados estes 30 anos, continuam a dar um grande prazer. E, também, a possibilidade de agora fazermos um concerto dos Mler Ife Dada com meios de que não dispúnhamos naquela época.

Anabela Duarte - Não, não dificultou, até porque já nos tínhamos encontrado antes. Apenas se proporcionou nesta altura reunirmo-nos e fazermos a montagem do concerto e das músicas que, também eu, já não ouvia há muito tempo, e as quais tenho muito gosto em reinventar e comemorar.

PP – Sendo um dos mais importantes e inovadores nomes do universo pop da música nacional da década de 80, acham que deixaram alguma espécie de legado? A par dos Pop Dell’Arte, os Mler Ife Dada conseguiram «surrealizar» o espetro musical português…

NR - Sinceramente, não sei.

AD - Ouvi alguns rumores de possíveis influências em outros músicos e grupos, e até há um trabalho científico sobre os Mler ife, apresentado em universidades, o que, até certo ponto, é algo desconcertante. Mas eu também já apresentei comunicações sobre a Diamanda Galàs ou o Lou Reed... Fazemos parte, creio, de um contexto cultural a que não podemos escapar.

PP – Dois anos depois de lançarem “Coisas que fascinam”, os Mler Ife Dada terminaram devido a desentendimentos entre o Nuno Rebelo e a Anabela Duarte, por altura da edição de "Espírito Invisível". Hoje, décadas depois, já pensaram como teria sido o sucessor do disco editado em 1989, se tivessem continuado a compor juntos?

NR - É-me muito difícil imaginar isso. Não foram apenas os desentendimentos que levaram ao fim do grupo. Eu também sentia que a minha passagem pela pop estava a esgotar-se e sentia necessidade de aprofundar a minha viagem na música por outras paragens, que foi o que fiz.

AD - Teria sido bom, imagino, mas provavelmente com outros músicos. Aquele casting é que se tinha esgotado, na minha opinião, mas, na altura, era difícil compreender isso. Cada um seguiu o seu caminho e somos os únicos sobreviventes com um percurso significativo na música, entre outras coisas.

PP – Desde a génese da banda que procuraram transgredir e extravasar o conceito pop. “Nu Ar”, a vossa primeira mostra musical, pautava-se pelo corte com o som vigente. Acreditavam que podiam reeducar o ouvido e a mente das pessoas?

NR - Para mim, os Mler Ife eram, entre outras coisas, um laboratório de composição pop, uma forma de aprendizagem pessoal do ato de compor. Usando as suas palavras, eram os meus ouvidos e a minha mente que estavam a ser reeducados e isso refletia-se naquilo que eu compunha para o grupo. Modestamente, não creio que tenha pensado alguma vez que estava a reeducar as pessoas.

AD - Foi, também, um meio de aprendizagem e desenvolvimento do meu potencial enquanto cantora e performer. Os concertos eram uma espécie de catarse musical e visual, e eu experimentava muitas coisas em palco. Levava sequências coreográficas, usava terapias chinesas, objetos inspiradores ou pequenos motivos vocais e teatrais que ensaiava ao vivo. Mas, de certa forma, éramos muito curiosos e pretendíamos dar a conhecer outras coisas, fazendo-as. E a dance music, por exemplo, apela a outra músicas e a outras linguagens, a uma audição mais ativa na pop, além dos costumeiros charts e playlists.

PP – De regresso ao presente e, mais propriamente, ao espetáculo a decorrer no CCB: sabemos que vão ter a companhia em palco de mais músicos, nomeadamente de um trio de cordas e sopros. A ideia é fazer a vossa música «crescer»?

NR - Sim, de alguma maneira é isso: trazer aos Mler Ife uma certa maturidade, ao mesmo tempo que revisitamos músicas do nosso passado.

AD - É dar maior intensidade e apurar com mais meios o trabalho anterior.



PP – Regravaram recentemente “Valete (de Copas)”. Essa revitalização - e revisitação - do vosso som teve em vista a apresentação no CCB ou outro objetivo?

NR - A revitalização atual do som dos Mler ife - e refiro-me a todas as canções que iremos tocar - está a ser feita com o objetivo de as apresentar no concerto. A gravação do “Valete (de copas)”, em concreto, fez-se com objetivos promocionais, para que na rádio pudessem passar material que exemplificasse como soam os Mler Ife Dada de agora.

AD - Exato. É natural que as pessoas fiquem com curiosidade sobre a música de «agora», passados 30 anos. Nós, a bem dizer, também estávamos com muita curiosidade e nada melhor que regravar uma canção como a "Valete". Só tenho pena de não regravarmos mais, mas quem sabe...

PP - Esse regresso a estúdio, ainda que breve, não vos deu vontade de voltarem a gravar temas originais? Tendo em conta o atual panorama musical português, acham que os Mler Ife Dada (ainda) faziam sentido musicalmente?

NR - De momento, estou apenas concentrado na preparação deste concerto. O facto de estar a escrever os arranjos para cordas e metais não me deixa espaço mental para pensar em temas originais. Por outro lado, não sei até que ponto gostaria, ou näo, de me envolver, de novo, tão intensamente com o universo da música pop.

AD - O Nuno já falou disso algumas vezes. Neste momento, contudo, temos de nos concentrar no que nos propusemos fazer e depois logo se verá. O facto de ele estar em Barcelona também dificulta um pouco as coisas.

PP – O concerto de 14 de fevereiro será um ato isolado ou já têm mais datas agendadas? Vamos ter os Mler Ife Dada na estrada?

NR - Se houver possibilidade, creio que sim. Um número limitado de concertos.

AD - Claro, também gostaríamos e já nos têm pedido para irmos a vários pontos do país. Em princípio, faremos mais, mas o futuro o dirá.

In Palco Principal

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

“Infamous: Second Son”: Primeiras Impressões

Seattle a ferro, fogo…e néon



É ao som dos Nirvana que somos convidados a testar a demo de um dos mais aguardados jogos da nova PS4. Falamos de “Infamous: Second Son”, o terceiro episódio da saga iniciada em 2009 que tem agora como protagonista Delsin Rowe, um graffiter que se encontra numa fase complicada de uma vida que vai dar assinalável volta depois de testemunhar de um acidente de viação e de estar em contacto com um condutor super-humano.

A partir daí, bom, a partir daqui não vamos revelar grande coisa pois “Infamous: Second Son”, com data de lançamento marcada para o final de março, ainda só deu a conhecer cerca de 10 minutos de um gameplay que promete arrebatar as emoções dos fãs da saga, e eventuais jogadores ocasionais, e que tem nos magníficos detalhes uma das suas maiores mais-valias.

Mesmo que não se seja um fã incondicional da série idealizada pela Sucker Punch Productions, passados poucos instantes, depois de sentirmos o dualshock 4 nas mãos, já estamos dentro da jogabilidade de “Infamous: Second Son”. A fluidez de movimentos é marcante e a vontade de exercitar parkour é imediata e tal é feito com maior intensidade que nos episódios anteriores. Agora é possível, num ápice, subir um edifício através de um ventilador, “voar” sobre telhados e sentir Seattle aos nossos pés.

Existem imensos “atalhos” que fazem a movimentação de Delsin parecer ainda mais rápida. Em poucos segundos é possível “carregar” o nosso personagem de “fumo” ou “néon”, escalar furiosamente uma parede, saltar sobre o inimigo, atacá-lo, e entrar na linha de fogo de um combate transversal e simbiótico. Se as coisas estiverem a correm mal, fujam, escondam-se, e façam o coração do nosso herói voltar a bater normalmente.

A excitação cresce a cada movimento e Deslin pode facilmente recarregar baterias usando para isso “condutores super-humanos” que permitem absorver poderes, ou seja, fumo/fogo e néon. Esta última arma permite ainda atingir velocidades supersónicas e deixar um rasto inebriante de partículas rosa e púrpura que representam um magnífico efeito na tela de jogo que tem um precioso auxílio da capacidade gráfica da nova PS4. E como é de pormenores que se fazem os grandes jogos, a chuva presente em “Infamous: Second Son” é, acreditem, incrivelmente real.

As potencialidades do dualschok 4 são amplamente exploradas neste jogo e a zona tátil serve de precioso aliado aquando algumas movimentações de Deslin ainda que requeiram um ligeiríssimo treino por parte dos nossos dedos até agora habituados às laterais e não à zona centro do comando. E por falar em centro, é daí mesmo que surgem alguns sons do gameplay através do micro do comando.

No que toca às cenas de ação, leia-se combate, “Infamous: Second Son” é muitíssimo competente e também nesse aspeto a fluidez do jogo é assinalável. Enquanto civis correm em busca de abrigo, Deslin utiliza as suas armas a bel-prazer que são mais que meras formas bélicas assumindo-se acima de tudo como parte de tudo o que acontece no jogo. O fumo lançado por Deslin torna esta Seattle ainda mais obscura e o vapor dai resultante dá um efeito interessante quando “estamos” em cima de um edifício.

Este breve mas incisivo contacto com a demo de “Infamous: Second Son” apresenta mais certezas que dúvidas e talvez, talvez, estejamos perante um dos mais importantes títulos single-player de aventura e ação deste ano que ainda agora iniciou. Pela amostra, pela emoção e assertividade gráfica estamos perante uma aparente grande aposta da Sony. O futuro assim o dirá.

In Rua de Baixo

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

“Nove histórias”
de J.D. Salinger

Laivos de génio em formato de conto



Sobejamente conhecido pelo assombroso livro “À espera no centeio”, uma das mais importantes obras do século XX, J.D. Salinger explorou o formato conto de forma a transpor, para o papel, pessoas, sentimentos ou acontecimentos resultantes de uma imaginação cuja fertilidade bebia alguma da sua irreverência em traços que misturavam a realidade norte-americana do pós-Segunda Grande Guerra e da década de 1950 com outros apontamentos (sur)reais.

Para além da já referida obra-prima, que tem como principal personagem o inesquecível Holden Caulfield, Salinger teve ainda espaço para articular na sua mente peças como “Franny and Zooey” – um conto originalmente publicado em 1955 no “New Yorker” – ou este “Nove Histórias” (Quetzal, 2014) cuja primeira edição remonta ao ano de 1953.

Um pouco como em toda a sua infelizmente curta obra, Salinger explora em “Nove Histórias” duas importantes facetas que transporta e reveste os seus personagens. Falamos da inocência e da hipocrisia, marcas que, numa linguagem literária única, acabam por ser como a soma das diferentes partes das pessoas que são os heróis dos contos deste norte-americano, que chegou a ser apontado como um dos nomes grandes da contracultura da segunda metade do século XX.

Num contíguo espaço de poucas dezenas de páginas, J.D. Salinger leva o leitor para um mundo ética e moralmente complexo, cuja atmosfera deveras ansiosa tem como maior alicerce um humor particular que, em determinados contos, funciona como uma mescla entre filosofia e psicoterapia. A sátira social – pode mesmo falar-se em caricatura – utilizada por Salinger descarna relações sociais, questões políticas ou comportamentos duvidosos e traz à tona dois elementos muito presentes no seu trabalho, como o são a solidão e a ausência de amor.

Das vidas “normais” aos estilos mais burgueses ou intelectuais, “Nove Histórias” explora fraquezas várias de pessoas que são peças do imenso puzzle que é a sociedade moderna, que há muito deixaram cair por terra o “sonho” – seja qual for a sua nacionalidade. E é com uma réstia de esperança que Salinger promove a heróis ocasionais as crianças em detrimento do espetro adulto, composto por criaturas cínicas e egoístas refugiadas em cigarros, álcool ou atitudes que, de certa forma, profanam a inocência dos mais novos.

Personagens como Charles, de “Para Esmé – com amor e sordidez”, o pequeno narrador de “O homem que ri” ou Lionel de “Em baixo no bote” vagueiam entre marés oscilantes de inocência e absurdo, todos eles com uma inata capacidade de esgravatar as várias camadas da perceção que podem desaguar em rios oníricos ou revestidos de alguma “inverdade” que possibilite resguardar-se da agressão adulta sob variadíssimas formas – com destaque para a desilusão, ou apenas ser sinónimo de delicadeza, ternura e alguma traquinice ou de precoce sapiência, especialmente nos casos de Charles no supra citado conto “Para Esmé – com amor e sordidez” e Teddy, do conto homónimo.

Por outro lado, em histórias como “Linda boca e verdes meus olhos” ou “Pai torcido em Connecticut”, são os diálogos que marcam toda a cadência e nem mesmo alguns “vícios” da oralidade colocam em causa a riqueza das conversas mais ou menos, intimas, mais ou menos certas, mais ou menos interessantes. Esses diálogos são também habilmente trabalhados por Salinger de forma a reforçar características dos personagens, que crescem para o leitor através de “gestos” ou tiques que relatam com detalhe a descrição emocional desses homens e mulheres.

Ler contos como o psicanalítico “Um dia ideal para o peixe-banana”, o reflexivo “Pouco antes da guerra com os esquimós”, o surreal “O homem que ri” e o compulsivo e existencialista “A fase azul de De Daumier-Smith é sentir a literatura no máximo de seu esplendor, abraçar personagens que crescem, desmoronam ou implodem no limitado espaço de um conto que pode ser bem mais pertinente, íntegro ou envolvente que livros com centenas de páginas.

Mais que um coleção de contos, “Nove Histórias” é um livro para ler, guardar, reler, recomendar e sentir como nosso. Salinger merece essa homenagem, nós merecemos um escritor assim.

In Rua de Baixo