sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Scott Matthew @ CCB

O paraíso existe e tem uma voz

 
 
Faltavam poucos minutos para as dez da noite quando as luzes do Pequeno Auditório do CCB começaram a desvanecer, devagar. Lá fora estava um frio invernoso, cortante, que fazia levantar golas e procurar um lugar quente. Ao lado, no Grande Auditório, fazia-se tributo a Joni Mitchell. Vivia-se em pleno o Misty Fest, evento que, ano após ano, traz a Portugal alguns dos mais interessantes intérpretes e músicos.

E vinha dos antípodas uma das vozes mais aguardadas da edição deste ano. Amigo de Portugal, Scott Matthew, convidado habitual de Rodrigo Leão, deu ontem um dos mais intimistas e maravilhosos concertos que os portugueses já assistiram. Na bagagem trazia o seu mais recente álbum, “Unlearned”, que se assume como uma homenagem sentida a algumas das canções que o acompanharam ao longo da vida e que marcaram indubitavelmente o seu crescimento.

Quando soaram os primeiros sons vindos do órgão de M Eugene Lemcio e Mathew se lançou numa deslumbrante e closy versão de “To Love Sombody”, um original dos Bee Gees, o tempo parou e, durante mais de hora e meia e quase duas dezenas de canções, sentiu-se o paraíso, com o anjo bem-disposto, natural de Queensland, a mostrar que é um dos mais emblemáticos cantores dos nossos dias. Envolto de uma simplicidade única, transformou uma normal noite de outono num hino à beleza.

Dono de uma voz invulgar, sempre à beira de um colapso deslumbrantemente doce, Scott Mathew sente-se em casa, pois, segundo o próprio, está “no melhor sítio do mundo”, que sabe receber quem o visita. Já sem o casaco, atira-se, delicadamente, a “Total Control” e a pérola musical originalmente composta pelos The Motels encarna uma segunda vida com a perspetiva de “Unlearned”. As palmas acontecem apenas quando do palco surge o silêncio, que é novamente quebrado com o afinar do ukelele de Matheew, que simpaticamente pede desculpa pelo facto. Depois, “There’s a Place in Heel for me and my Friends”, uma revisitação à obra de Morrissey, faz Scott levar a audiência para lugares onde o espírito pode e deve descansar.

Mas esta celebração em forma de concerto não era apenas condimentada com canções de outros. Ao longo da atuação, Scott Matheew brindou os presentes com temas do seu próprio reportório e, repleta de dramatismo, “For Dick” foi o primeiro exemplo. A seguir, “The Wonder of Falling in Love”, outro tema em nome próprio, deu origem a um coro de vozes tímidas por parte do público.

O regresso a “Unlearned” foi feito através da invocação de Neil Young e da versão de “Harvest Moon”, que Matheew, em tom de brincadeira, já afirmou ser melhor que o original. A interpretação trouxe ao palco Celina da Piedade que, na companhia do seu acordeão, trouxe mais solenidade e brilhantismo à noite. A maravilhosa rendição foi brindada como uma estrondosa salva de palmas.

Numa noite em que a alma foi repetidamente assaltada pela paz, através de canções maiores que a vida, “Smile”, tema da autoria de Charlie Chaplin, foi sinónimo de um momento desarmante, delicado, profundo, apaixonado. Por mais adjetivos que procuremos, é quase impossível descrever aqueles minutos que tornam a existência num lugar mais bonito e repleto de sentido. Matthew afirma que se trata da "canção mais triste sobre estar feliz" - e não anda longe da verdade.

Ainda com Celina em palco, a improvável “I Wanna Dance with Somebody”, cover de uma das mais emblemáticas canções de Whitney Houston, traz outro toque de magia ao espetáculo e, acredite-se, Scott Matthew consegue dar um cariz tão especial às suas versões que as mesmas se apropriam de alma própria. O público não resiste e acompanha a portuguesa no coro e o encantamento que se sente no Pequeno Auditório do CCB está ao rubro. “In the End” faz o australiano regressar às canções em nome próprio, sendo que “Jesse” traz à memória o “fantasma” de Roberta Flak. Logo a seguir, a curta “L.O.V.E”, de Bert Kaempfert, traz um pouco de “cabaret”.

“Little Bird”, retirada do álbum de estreia de Matthew, continua uma festa que também revela algumas surpresas, e a versão de “Anarchy in the UK” faz o australiano regressar aos seus tempos de membro de uma banda punk. A rebeldia deu lugar a um estado deslumbrante de doçura e da plateia surgem sorrisos. Segue-se “Abandoned”, com um fantástico falsete, e, antes da saída de palco, a brilhante “Annie’s Song” traz a palco John Denver. Matthew e companheiros saiem de cena mas a ovação de pé da plateia faz os músicos regressaram instantes depois.

“White Horse”, do álbum “There is an Ocean…”, é a primeira canção de um encore que traria ao palco todos os músicos que acompanham Scott Matheew, para uma interpretação em forma de trauteio de “Friends and Foes”, que também faz parte do já referido disco de 2009. Mais palmas, muitas, e Matthew aproveita para agradecer ao seu amigo Rodrigo Leão, presente na sala, mas como espetador.

Antes de abandonar por completo o palco, Scott, para os amigos, oferece uma maravilhosa versão de “Love Will Tears Us Apart”, que ousou invocar o fantasma de Ian Curtis. A assombrosa brutalidade da última música bateu forte e o sentimento de emoção total e a sensação de partilha e honra de se fazer parte de um momento sublime como aquele encheu a alma de quem saiu do Pequeno Auditório do CCB com a consciência que assistiu a um concerto deveras maravilhoso.

Antes de Scott Matthew, o palco pertenceu a Valter Lobo que, na companhia de Jorge Moura, ofereceu uma mão cheia de bonitas e “tristes” canções de inverno, nome de batismo do primeiro EP do nortenho. “Eu não tenho Quem me Abrace Neste Inverno”, “Asas”, “Ser de Água” e “Pensei que Fosse Fácil” foram sinónimo de belos e intimistas momentos, onde a qualidade de trovador de Lobo ganha uma assinalável magnitude através dos laivos timidamente sónicos das cordas de Moura. Envolto de uma melancólica moldura, a fotografia musical de Valter Lobo merece, de certeza, maior atenção. A não perder de vista.

Foto: Marta Ribeiro

In Palco Principal

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