quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Arcade Fire – “Reflektor”

Uma luz que teima em ficar acesa



Ao longo da história da música, alguns discos deixaram tudo e todos boquiabertos e marcaram, definitivamente, um determinado período. Isso já acontece há décadas e na memória ficam, por exemplo, álbuns como “Their Satanic Majesties Request”, dos Rolling Stones, ou “Revolver”, dos Beatles. Ainda que estes dois exemplos de trabalhos reportem a períodos em que as respetivas bandas já apresentavam a carreira cimentada, noutros casos a surpresa acontece logo ao debutante registo de originais.

Começar a carreira com um primeiro disco fenomenal pode ser, como diz o povo, “uma faca de dois gumes”, mas a solidez dos trabalhos seguintes pode alicerçar uma acertada noção de contexto e carreira. Passou-se isso com “Blue Lines”, dos Massive Attack; “Dummy”, dos Portishead; “xx”, dos The XX; e “Funeral”, dos Arcade Fire. Todos estes (grandes) discos criaram raízes de imediato e deixaram sedentos os seus fãs.

Existem ainda outros casos de bandas que, a meio da sua existência, mudam as suas premissas e apostam em autênticas reviravoltas no que à sua música diz respeito. Fazem reflexões da própria reflexão e abraçam novos continentes sonoros. Os Radiohead fizeram isso com “Kid A”, os Talking Heads rebentaram amarras com “Remain in Light”.

Seguindo filosofias de continuidade ou rutura, apenas as grandes bandas conseguem fazer grandes discos, salvo, lá está, alguns tiros no escuro que depois acabam por revelar-se em equívocos. E é no escalão dos grandes, enormes, agrupamentos musicais que os Arcade Fire hoje se encontram. “Reflektor”, o quarto e muito aguardado álbum da banda dos irmãos Butler esteve embebido em grande secretismo e acaba, agora, por se revelar um disco charneira de uma carreira cimentada pela qualidade inata dos três trabalhos anteriores.

Três anos depois do «springsteeneano» “The Suburbs”, eis que, com James Murphy e Markus Dravs na produção, os Arcade Fire regressam em enorme forma com “Reflektor”, um disco de coração duplo e que, assente numa saudável bipolaridade, revela um sexteto mais dado à prospeção de sons mais dançáveis, mas sem perder as suas raízes e identidade. Sim, existem marcas claras de um «voodu» haitiano, sentem-se umas pitadas nascidas da genialidade dos New Order, mas, acima de tudo, a música dos Arcade Fire é uma arte em constante evolução e o sentimento de estar no limbo mantém-se ao longo dos quase 80 minutos deste novo álbum.

Se “Funeral” se revelou uma obra (quase) perfeita, “Neon Bible” e “The Suburbs” colocaram os Arcade Fire num patamar elevadíssimo e, depois de ouvirmos “Reflektor” várias vezes, sentimos que estamos perante um disco com um conteúdo complexo, que se contorce sobre si mesmo e que manifesta a ausência de qualquer tipo de inibição. Falamos de liberdade criativa.

Depois de dez anos a professarem uma música maior, os canadianos Arcade Fire sentem que ganharam o privilégio de dinamizar o conceito da sua interior bolha musical. Com os ecos de um rock mais dinâmico misturado com outros momentos recheados de melancolia noir, músicas como “Wake Up”, “No Cars Go” ou “Rococo” conferiram notoriedade aos seus criadores, que hoje se dão ao luxo de requisitar/aceitar a participação do mestre David Bowie para abrir da melhor forma “Reflektor”, através da sua faixa título, que é sinónimo de mais de sete minutos de batidas acutilantes, sons que se refletem a si mesmos, frases cantadas num delicioso francês e certezas de se ter conseguido uma conexão repleta de sentido. É assim que se entra no «céu» dos Arcade Fire, numa noite escura cujo farol se encontra ao longo das duas faces de uma mesma moeda, como o são estes dois discos.

Em forma de resumo, em “We Exist”, uma faixa assente numa batida de baixo deliciosa, canta-se “Walking around, Head full of sound” - e é essa a sensação que nos vai acompanhar durante mais de uma hora de novas canções. Às batidas de bateria e ao dueto vocal entre Win e Régine, juntam-se ecos synth, umas pinceladas de piano e uma tímida guitarra. A atmosfera criada leva-nos para um registo de saudável paranoia.

A seguir, “Flashbulb Eyes” apresenta uma dimensão perto de uma sessão dub, carregada de laivos reggae. O corpo abana suavemente e esta, que é uma das faixas mais curtas de “Reflektor”, faz sobressair a ligação rítmica entre o muito presente baixo de Tim Kingsbury e as batidas à la The Clash de Jeremy Gara. E são novamente os sons freak gerados por Gara que dão o mote a “Here Comes the Night Time”, um exercício de pura catarse, com ondas catatónicas quebradas por umas teclas que anunciam uma saudável amálgama sonora que abraça o ouvinte dos pés à cabeça. Seis minutos e meio parecem, acreditem, passar num ápice.

“Normal Person” é um dos exemplos mais rock de “Reflektor” e parece evocar os fantasmas deixados pela participação do Camaleão logo na faixa que abre este disco. As guitarras estão mais soltas e Butler canta de coração aberto, mas com uma contenção à beira do abismo e com muito e bom swing. Ainda em contextos rock, “You Already Now” é um dos momentos mais festivos desde disco, em que a harmonia musical se funde na perfeição com a poesia cantada. A última canção do «lado A» de “Reflektor”, “Joana of Arc” assume-se como uma convencional canção-power, que mistura elementos rock e pop cujo começo, repleto de speed, vai metamorfoseando-se num registo mais escuro, talvez como que a adivinhar o que se aproxima.

E eis que, com a chegada de “Here Come the Night Time II”, a primeira faixa do «lado B», somos envolvidos por uma dolente ambiência, docemente envolvida em momentos mais sintéticos, que se combinam com algumas cordas ocasionais. A noite chega, devagar, e nós entramos nela. A sombra instala-se e, aos primeiros acordes de “Awful Sound (Oh Eurydice)”, uma balada de cariz espacial, começamos a compreender a pronunciada imagem que serve de capa a “Reflektor”. O registo é agora mais tranquilo e são sugeridas calmas batidas cardíacas, quebradas por uma solenidade desarmante. A eletrónica também mora aqui e “It´s Never Over (Oh Orpheus)” é um claro exemplo dessa aposta que, de certa forma, continua em “Porno”, ainda que de uma forma mais contida e em género de abordagem synth-pop.

Já perto do final do álbum, “Afterlife” é um verdadeiro hino à Arcade Fire, uma canção maior que a própria existência, que se torna instantaneamente num vício para o corpo e a alma. O refrão é absolutamente devastador e faz como que uma síntese das várias atmosferas que se respiram e coexistem em “Reflektor”. Para o final da festa, os Arcade Fire escolheram “Supersymmetry” e, ao longo de 11 minutos, a ordem é para relaxar e absorver a maravilha musical que é a súmula da arte feita por Butler e companhia, e que é uma autêntica primavera sonora.

Depois de ouvirmos “Reflektor”, uma das ideias que ficam prende-se com um propositado ambiente bipolar que os dois discos conferem em termos gerais. Mais do que complementarem-se, os dois lados, faces - o que quiserem - do quarto registo de originais dos Arcade Fire resultam num excelente disco, que vai marcar o ano de 2013. Os canadianos habitam um planeta próprio, mas não fecham portas a qualquer tipo de invasão sonora, o que acaba por resultar em vários degraus de uma franca honestidade. A música, para eles, é uma constante evolução, uma barreira que se cimenta às custas da sua desconstrução e que tem como resultado final a catarse em si mesma, assente numa luz brilhante.

Alinhamento:

Disco 1
1. "Reflektor"
2. "We Exist"
3. "Flashbulb Eyes"
4. "Here Comes the Night Time"
5. "Normal Person"
6. "You Already Know"
7. "Joan of Arc"

Disco 2
1. "Here Comes the Night Time II"
2. "Awful Sound (Oh Eurydice)"
3. "It's Never Over (Hey Orpheus)"
4. "Porno"
5. "Afterlife"
6. "Supersymmetry

Classificação do Palco: 9/10

In Palco Principal

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