quarta-feira, 2 de outubro de 2013

“A Desumanização”
de Valter Hugo Mãe

A Alma de Querer ser Longe



A Islândia é um local misterioso. A terra de gente como, por exemplo, Bjork e Sigur Rós, remete para um imaginário digno de um conto de fadas que tem a capacidade de deslumbrar ou assombrar. A sua Natureza atrai, o seu relevo marca quem por lá passa.

Valter Hugo Mãe é um admirador confesso da magia inata dessa ilha situada a norte do Atlântico. Foi tendo esse contexto geográfico em mente que idealizou parte do documentário “O Sentido do Vida”, um trabalho de Miguel Gonçalves Mendes que, aos poucos, foi gerando na sua cabeça a génese de uma narrativa que se foi transformando no seu sexto romance.

Assim, “A Desumanização” (Porto Editora, 2013) nasce de um diálogo interior em confronto com a magnitude e opressão da Natureza, aqui entendida com um sentido duplo onde o ambiente que nos rodeia e o âmago pessoal se completam na busca por uma identidade transcendente, assente em imaturidade e inocência próprias de quem ainda não viveu e subiu muitos degraus na escadaria da existência.

Esta edição, que marca a estreia do autor de “O Nosso Reino” ou “O Filho de Mil Homens” na Porto Editora, tem a ambição maior de ser “um livro de ver”, uma obra (de certa forma plástica) que tenta descrever sentimentos e sentidos que fazem uma viagem entre o onírico e o pesadelo. A escrita de Valter Hugo Mãe assume um papel mediador entre o pensamento e a palavra, entre o ver e o sentir.

Logo nas primeiras páginas do livro, as ilustrações de Cristina Valadas servem de ponte para a estória que se quer contada. Halla, a personagem principal deste livro e a narradora do mesmo, conta um pouco do que é conhecer, de forma inesperada e forçada, sentimentos poderosos como a solidão, a perda, o crescimento, a dor.

A morte de um ente querido – neste caso de uma irmã gémea que acaba por servir de reflexo do “Eu” de Halla – transforma o futuro em desespero e o presente em profunda tristeza e incerteza. De irmã, amiga e companheira, Sigridur passa a assumir o papel de “menina plantada”, deixando Halla nas mãos do infortúnio que apenas a natureza tem o dom de curar ou amenizar feridas.

E é no cenário desoladoramente só dos fiordes do oeste islandês que descobrimos a alma humana da escrita (poética) de Valter Hugo Mãe, com letra maiúscula, um escritor de alma aberta, de coração entregue às suas palavras, frases, ideias, dúvidas. O revelo do cenário rasga a vida dos personagens de “A Desumanização” de uma forma dilacerante, mas a leitura deste livro serve o propósito da catarse enquanto obra escrita, enquanto tentativa de caracterizar o sentimento “solidão” através da simbologia do espelho da alma, da pessoa gémea.

Numa das passagens do livro a narradora afirma: «Não ler, pensei, era como fechar os olhos, fechar os ouvidos, perder sentidos. As pessoas que não liam não tinham sentidos. Andavam como sem ver, sem ouvir, sem falar. Não sabiam sequer o sabor das batatas. Só os livros explicavam tudo. As pessoas que não leem apagam-se no mapa de deus.»

Não sendo um livro que explica “tudo”, “A Desumanização” é um dos (poucos) exemplos de um escritor que foi ganhando espaço e liberdade para nos penetrar na alma e por lá ficar até percorrer o núcleo do todo dos nossos sentidos. Este privilégio invasor é algo que apenas está ao alcance de quem escreve com e para a alma, e Valter Hugo Mãe é um artista da palavra e utiliza a mesma para nos tornar pessoas mais completas, mais humanas.

No fundo, “A Desumanização” pode ser visto como um dicionário aberto de uma alma que se refugia na (des)esperança e na purificação do passar dos dias, na redenção do amor proibido e incompreensível, na descoberta da gestação, na digestão do desgosto poético, no arranhar da delicadeza imberbe, no abandono e no terrível reconhecimento da morte enquanto alma gémea. Mas, mais do que isso, é uma obra arrebatadora.

In Rua de Baixo

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