quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Raquel Varela
em Entrevista



“A história mostra, claramente, que a economia não é algo natural, e sim o resultado contraditório da cooperação entre os homens”. Entrevista a Raquel Varela, autora de “A Segurança Social é Sustentável».

A crise económica é também um vazio de valores sociais. Esta é um das ideias que fica ao falarmos com Raquel Varela a propósito da edição de “A Segurança Social é Sustentável”. Sem “papas na língua”, a autora deste pertinente livro e coordenadora do grupo de estudos de trabalho e dos conflitos sociais do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa faz uma análise profunda à atual situação económica e lança algumas questões pertinentes. Que a aula de economia comece!

Numa época verdadeiramente niilista face ao crescimento da economia global foi, de certa forma, a esperança da recuperação financeira que a fez pensar este livro?

A propaganda governativa tem difundido ideias falsas, sem sustentabilidade nem seriedade, os políticos fingem ignorar os trabalhos feitos na academia sobre a realidade social – há centenas de investigadores nas nossas universidades todos os dias no país a trabalhar sobre economia e sociedade, mas ouvimos os media dizer sempre o mesmo e ouvir sempre os mesmos. Havia que trazer os académicos para este debate em termos públicos, com mais presença. Essa era uma urgência, trazer a ciência e sair do senso comum.
Trata-se de expor um conjunto de logros e mistificações que têm sido usados como verdade absoluta e inquestionável – não é verdade que haja idosos a mais para o número de trabalhadores, o país não deixou de produzir (há mais produção e mais concentração de riqueza; o número de trabalhadores no sector secundário quase não caiu desde o 25 de abril, o rendimento mínimo, o RSI, é uma benesse mas também é um conselho do Banco Mundial para evitar situações revolucionárias ou disruptivas do processo de acumulação). Estes são alguns exemplos do retrato que damos do país para além do senso comum.

Pretendia-se reflectir sobre as políticas sociais, económicas e financeiras, que prejudicam a grande maioria das pessoas, e mobilizar os académicos que têm um trabalho amplo sobre estes temas, sério e reflectido.
Mas não se tratou, nem se trata, de esperança na recuperação de um modelo económico que só traz desesperança. O trauma dos horrores estalinistas não me fez em nada acreditar que o capitalismo é o fim da história. Há história para além do gulag e de Guantánamo! Não há recuperação económica no moderno modo de produção capitalista sem barbárie social. E isso é independente de termos gestores mais ou menos corruptos.

Creio que estamos a viver uma crise de 29 adiada. Creio que esta crise não é uma crise financeira nem de subprime, mas uma crise cíclica que começa na produção industrial norte-americana e tem o seu sintoma mais evidente ao nível financeiro. Não confundo a pneumonia com a febre. A pneumonia é a contradição entre a produção para as necessidades e o lucro; a febre, o colapso bolsista que significa a desvalorização da propriedade, em virtude da deflação dos preços na produção. Vou dizê-lo sem diplomacia, quem não percebe a lei do valor enunciada n’ O Capital de Marx não percebe nada da sociedade onde vive. Pode tentar, mas nunca vai dizer nada que não seja superficial. E a prova disso é que 99% dos economistas acha que o dinheiro produz dinheiro. Falam como se as bolsas tivessem vida própria, e mesmo os críticos daquilo a que chama neoliberalismo acham que vivemos numa economia de casino. E a minha pergunta é: se vivemos numa economia dominada pelo sector financeiro, de casino, por que é que as ajudas financeiras não valem nada sem o salário das pessoas? O que aconteceu em 2008 foi uma ajuda maciça ao sector financeiro e 3 meses depois olharam para as populações e disseram: agora são vocês, com as vossas reformas e salários, a pagar! Porque o que provou esta crise é que a produção, o salário e o trabalho são determinantes, o resto, os títulos e as acções, sem isto, sem trabalho, são apenas papel.

Explorámos esta hipótese, de uma crise de 29 em gestação, no livro Quem Paga o Estado Social em Portugal? (Bertrand, 2012). É uma crise do capitalismo, como haverá outra (maior ou não) daqui a 18, 20 meses? São crises cíclicas.

E das quais «sair da crise», nos marcos do modo de acumulação baseado em relações mercantis (capitalista), só é possível diminuindo o salário, aumentando a jornada de trabalho, intensificando as tarefas, numa palavra, colocar 1 trabalhador a fazer o trabalho de 2 ou 3 e despedir os restantes. O que vulgarmente se chama na televisão «descer o custo unitário do trabalho», que tem como contrapartida, nunca dita, «aumentar a rentabilidade do capital investido».

Por outro lado, este livro também surge de uma pergunta que me inquieta e inquieta os autores, embora não tenhamos todos a mesma resposta. Por que é que, numa fase de regressão social, uma população tão escolarizada e urbanizada, e sem a válvula de escape da emigração a funcionar como nos anos 60, como é que com estas condições não há uma revolta social, uma situação revolucionária? A minha primeira resposta é porque há quase 1 milhão de pessoas que está a receber algum tipo de assistência social, uma generalização da «sopa dos pobres» que tem um efeito amortecedor dos conflitos sociais. E quem paga isso é a segurança social. Quem gere isso é o Estado.

Quando digo que estamos em algo mais próximo a uma crise de 29 do que por exemplo a uma crise como foi a de 1973 (chamada vulgarmente por crise do choque petrolífero) digo-o porque creio que apesar de toda a destruição de capital (fecho de empresas, com recessão e aumento do desemprego) as taxas de lucro não se recuperam facilmente e as taxas de crescimento são anémicas. Isto é, podemos estar numa bifurcação histórica, em que não é mais possível o capital crescer sem espalhar a miséria e a barbárie social agora mesmo entre os sectores médios dos países centrais, isto é, na Europa. Na Alemanha e na França já se fala dos working poor, pessoas cujo único trabalho não lhes permite viver, precisam de acumular com outro trabalho ou parcialmente depender da assistência social (caridade organizada pelo Estado).



Será a análise histórica uma das melhores formas de compreender a evolução da própria economia? O Estado é, por norma, um bom aluno?

Essa é uma pergunta para dias (risos).

Desde logo quero dizer-lhe que acho a metáfora do bom aluno perigosa. Tenta fazer crer que os governantes não têm responsabilidade política nem poder decisório, como se fossem entidades passivas e subservientes, quase como se os infantilizassem.

A história mostra, claramente, que a economia não é algo natural, e sim o resultado contraditório da cooperação entre os homens. O capitalismo, portanto, foi o resultado, entre outros factores, da própria acção do Estado que, pela força e pelas leis, criou as condições de uma sociedade de mercado, como Marx bem demonstrou no capítulo XXIV d’ O Capital. Assim, pode-se dizer que o Estado foi, desde os primórdios do capitalismo, um sujeito importante na trama do mercado, o que expõe claramente o facto de que a ideia de um Estado não-interventor na economia (liberalismo e neoliberalismo) sempre foi uma falácia, uma ideologia pueril.

Quando comecei a escrever o artigo que relaciona a gestão da força de trabalho com a segurança social fui ao século XIX à procura da origem da segurança social. Nunca tento compreender um assunto sem procurar o seu, chamemos-lhe assim, antepassado. O que eu queria perceber era a origem da segurança social, mas acabei a perceber que a segurança social tem sido o fundo para precarizar os trabalhadores e que esse papel tem sido levado a cabo pelo Estado que não deixa de intervir na economia, pelo contrário, é cada vez menos neoliberal (conceito por isso errado) e mais interventivo (diria algo como um keynesianismo conservador).

O que encontrei foi desde logo a distinção entre assistência, protecção e segurança social. No século XIX existe, para a maior parte da população, uma assistência e não uma protecção social, nem sequer uma segurança social. A segurança social, isto é, segurança para todos, universal, com base na ideia da riqueza colectiva, nasce em 1974.

Mas também me apercebi como a assistência social surge já como gestora dos efeitos da proletarização – os asilos, mais tarde a «sopa dos pobres» do XIX são, de uma forma diferente, o passado das actuais cantinas sociais. É quando o Estado actua para atenuar os efeitos da hoje dir-se-ia precarização – ou seja, quando o trabalhador não recebe do patrão o suficiente para viver ou quando vai para o desemprego em épocas de redução de lucros, é o Estado que mantém o trabalhador vivo, digamos assim. Isto cresceu brutalmente em toda a Europa nos últimos vinte anos! Na Dinamarca e na Suécia um trabalhador precário tem até algo como 80 dias sem trabalho pagos pela segurança social, na Alemanha há centenas de milhares de pessoas que recebem o Hartz IV, por cá chama-se RSI (Rendimento Social de Inserção). Mas quem paga isto? O fundo da segurança social, que é dinheiro dos trabalhadores. E quem gere? O Estado. Para quem? Para manter as taxas de lucro que as empresas consideram apetecíveis.

E assim voltamos à primeira pergunta – crise significa destruir riqueza para manter lucros, significa recessão programada. «Isto não é a crise», como se gritava nas ruas de Espanha, «isto é o capitalismo». Funciona assim, mas funciona assim usando ajudas estatais maciças, é assim desde a II Guerra Mundial e será cada vez pior, na minha opinião…

A análise histórica é o único ponto de partida seguro para construir uma compreensão de qualquer aspecto da sociedade. Não o digo porque sou historiadora. É o contrário. Sou historiadora porque acredito que é a forma mais próxima de compreender a sociedade.

Portugal encontra-se numa posição de fragilidade extrema no contexto europeu. Acha possível uma eventual perda de autonomia do Estado face à dívida crescente?

O Estado é o instrumento usado para pagar a dívida, isto é, a dívida é paga com a precarização das leis laborais, feitas pelo Estado, com a privatização dos serviços públicos, com os cortes dos salários e com os aumentos dos impostos. Tudo é feito pelo Estado.

Sobre a autonomia é relativo, creio. Como devemos chamar ao fenómeno de os governantes portugueses acordarem políticas com Bruxelas e Berlim antes de as discutirem com os portugueses? Há algo de perda de autonomia, mas as empresas portuguesas que estão representadas neste governo – exportadoras, EDP, Grupo Mello, BES, etc – têm muito a ganhar e definem com a troika as políticas. Não creio que haja uma colonização do país, diria mais uma joint venture. Quem é o parceiro do Grupo Mello nos hospitais privados, hospitais cuja metade do financiamento vem dos subsistemas públicos? A Siemens alemã!

O esforço pedido pela Troika é muito exigente. No seu entender existe alguma legitimidade na aplicação das recentes e recorrentes medidas de austeridade por parte do executivo português?

Os interesses das populações, tal como estão definidos nos diplomas internacionais, são de carácter social, económico e cultural – incluindo a saúde, a educação, a protecção dos carenciados e mais fracos e um nível mínimo de bem-estar definido em diversos diplomas internacionais. Uma vez que todas as medidas de austeridade têm sido aplicadas em nome dos interesses dos credores (sumariamente representados na Troika), com prejuízo flagrante dos direitos e necessidades fundamentais da população, elas são claramente ilegítimas.



O Governo, neste momento, representa o interesse dos cidadãos?

É evidente que não. Este Governo tem defendido os interesses patrimoniais de uma ínfima minoria e dos seus grandes grupos económicos; curiosamente, essa ínfima minoria pertence, em parte, à mesma linhagem de gente que foi defendida no tempo do Salazar, como ilustra, e bem, o livro Os Donos de Portugal (Afrontamento).

Para pegar apenas na questão do pagamento da dívida pública, que é o argumento com que este governo (e os outros que se têm apresentado como opções, em teoria) justifica toda a política económica. Um Estado que promove despedimentos, corta salários e pensões com o argumento de que há uma dívida pública para pagar, enquanto permite a Ricardo Salgado fazer lucros com a dívida pública (825 milhões de euros em 2012), não representa o interesse dos cidadãos, claramente representa o interesse de apenas alguns deles. A quem duplamente protege, quando amnistia dívidas fiscais, enquanto ao cidadão comum cobra multas pelo mesmo motivo.

Sempre houve corrupção, mesmo em sociedades pré-capitalistas, como é óbvio. Mas hoje o capitalismo precisa do Estado para sobreviver e de um Estado cada vez mais forte. O BPN e talvez toda a banca teriam ido à falência sem ajudas estatais. Que arrecada cada vez mais impostos e que transfere cada vez uma maior fatia do orçamento para o sector privado. Isto eleva a corrupção e a promiscuidade entre a produção, a finança e o poder político, a níveis, diria, sem paralelo na história. Quando se fala de financiamento a campanhas fala-se de milhões! Aliás em certos países, nos mais ricos e desenvolvidos, onde há maior acumulação de capital e a competição entre empresas é maior, não há menos corrupção; pelo contrário, atingiu níveis em que o próprio Estado teve que intervir, regular e arbitrar – chama-se lobbying. Qualquer chorudo maço de notas que se passa em Angola debaixo da mesa são cêntimos comparado com o que a indústria de guerra ou farmacêutica transferem para os partidos Democrata e Republicano nos EUA.

O Memorando de Entendimento põe em causa o direito dos trabalhadores e traz à tona o fim da ideia de emprego de longa duração e traz em definitivo a precariedade. Onde fica o pleno emprego?

O pleno emprego só pode ser assegurado na repartição do trabalho, mais gente a trabalhar menos tempo. Aliás, o aumento da produtividade (mais produtos em menos tempo de trabalho, permitido pela utilização de máquinas) logicamente deveria conduzir a este resultado. Tal como nas nossas casas: pomos a roupa a lavar numa máquina para ficarmos com mais tempo livre (para o dedicarmos a coisas preciosas, como cuidar de nós e dos outros). O que impede que isto aconteça nas nossas vidas profissionais é que esta poupança de tempo reverte, sob a forma de lucros, para o capital. Ora o capitalista não investe para suprir necessidades sociais. Investe se acha que poderá obter uma taxa de lucro que ele considere apetecível. O aumento da produtividade significa que se pode fazer o necessário para a vida da sociedade em muito menos tempo. Se a sociedade trabalhasse para suprir as suas necessidades, isso significaria que todos nós precisaríamos de trabalhar menos. Mas com o capitalismo isso significa o quê? Mais desemprego. A precariedade e a insegurança não têm como objectivo tornar as pessoas mais eficazes no seu trabalho, mas baixar os salários e permitir despedi-las mais facilmente.

Quanto aos efeitos que a precarização tem na segurança social: mais gente a trabalhar com contratos de trabalho dignos significa mais gente a descontar para a Segurança Social, o que é a chave da sustentabilidade, tanto da própria segurança social como das receitas do Estado – o que, nunca é demais lembrar, não são a mesma coisa. Mais gente precária e mais trabalhadores desempregados significa um atentado à sustentabilidade da Segurança Social, isto é à sobrevivência futura das pessoas que estão hoje em idade adulta e capazes para o trabalho. O capitalismo hoje não promove o progresso, mas a barbárie. E a barbárie não é uma abstracção: já a sentem todos aqueles que hoje são atirados para a sarjeta, privados de trabalho e de meios de subsistência. Mas poderá assumir a forma de uma nova guerra, tal como a II Guerra Mundial foi o factor determinante para o capitalismo superar a sua crise de 1929 que se arrastou pelos anos 30, com o seu cortejo de miséria e regimes dominados por associações de criminosos, como os fascismos.

Afirmou ser a favor da greve dos professores. Numa época em que a agitação social se vê com tanta frequência nas ruas não teme que a banalização destes actos seja uma realidade premente?

Temos que reflectir sobre isto. A última greve geral foi para fazer cair o Governo e o Governo não caiu, por isso não houve nenhuma vitória nem foi um sucesso, ainda que os transportes tenham paralisado e muita gente tenha perdido um dia de salário. Mas mostrou que esta política não tem apoio social entre quem vive do salário. Aliás até agora salvo, creio, o caso dos médicos (que conseguiram proibir a subcontratação nos termos em que estava, evitando assim uma precarização maior) e dos feirantes (que acamparam na AR) e tirando algo pontual, nenhuma categoria profissional obteve vitórias, somam-se as derrotas. Creio que o método de fazer manifestações ou greves e a seguir ir trabalhar e sentar-se à mesa de negociações – que é o que tem acontecido ao longo de 40 anos de pacto social – está a revelar as suas limitações para impedir a presente regressão social. Isto é: não chega. E pode ser desmobilizador: manifestações gigantes sem qualquer resultado podem fazer as pessoas pensar: «Afinal para que vou manifestar-me?»

Confesso que fico surpreendida por plataformas chamarem manifestações e não haver plenários, convocação para organização, ou outros métodos que dêem continuidade àquela força social. Na verdade, as plataformas que chamam manifestações limitam-se a ter como saída para a crise eleições, o que não mobiliza, ou mobiliza cada vez menos pessoas – a abstenção cresce, o número de votos brancos e nulos cresce, os partidos de esquerda não aumentam significativamente, apesar do lamaçal em que estão os três partidos do regime, e na minha opinião isso deve-se ao facto de que os partidos de esquerda (BE e PCP) procuram uma saída, eleições, na qual uma parte acredita (a ideia do Governo de esquerda) mas uma outra parte, substancial, e porventura a mais jovem (força de trabalho precária e desempregada e, que por isso esta fora do pacto social) não se revê nisso.

As grandes manifestações ou greves só terão sucesso, na minha opinião, e olhando os exemplos que temos do passado em Portugal, nomeadamente o período de 1974-1975, que conheço bem porque é a minha área de estudo, se houver organização democrática associada à acção colectiva (greves, manifestações, etc.). Isto é, colocar as pessoas não a depositar o voto e delegar poderes, não a desfilar numa manifestação que acaba ao fim de hora e meia e ao fim de uns minutos 1 milhão de pessoas desaparecem, mas desafia-las a gerirem as suas próprias vidas. Essa é a arte da política. Isto é, as pessoas passarem a funcionar de forma democrática, com dirigentes revogáveis (que possam ser imediatamente demitidos se não respeitam a vontade das bases) e funcionarem assim tomando as decisões importantes, nas escolas, nos bairros, nos hospitais, nos transportes, na produção e na circulação da produção e, claro, no sector bancário e financeiro.

Acha possível, de facto, a recuperação económica de Portugal?

Para responder a essa questão é necessário dizermos de que Portugal estamos a falar. Se é do Portugal de Soares dos Santos, Mello, Espírito Santo, Mota Engil, sim, eles até já voltaram aos lucros, já saíram da crise. O capitalismo não morre de colapso final, como era afirmado pelo dogmatismo pró-soviético e pelas leituras estalinistas (leia-se mecanicistas) do marxismo. O capitalismo pode sempre recorrer à barbárie, em última análise à guerra, como fez na II Guerra Mundial em resposta à crise de 1929. Criar uma «economia da destruição». Mas se é do Portugal dos trabalhadores que estamos a falar, ou seja, daqueles que dependem inteiramente da venda da sua força de trabalho para subsistir, eu diria que a crise está longe de ser resolvida e que terá de se encontrada uma força social semelhante a 1974-1975 para mudar o rumo do país.

In Rua de Baixo

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Nadine Shah
“Love Your Dum and Mad”

Canções de amor e devoção



Os primeiros sons de “Aching Bones”, a faixa que abre “Love Your Dum and Mad”, disco de estreia de Nadine Shah, revelam um vazio fragmentado que é interrompido por singelos toques marciais de uma bateria que vai perdendo a timidez à medida que o baixo dita as suas leis.

Depois, o ritmo sorumbático é quebrado por uma voz que rapidamente se infiltra pelos recantos mais íntimos no nosso corpo. O lamento dolente e negro da cadência vocal de Nadine Shah hipnotiza, suga a atenção e, no final dos cerca dos quatro minutos da canção que abre o álbum de estreia desta mulher fruto da relação de um pai paquistanês e mãe norueguesa, estamos entregues.

A atmosfera que nos acompanha ao longo das 11 músicas de “Love Your Dum and Mad” é apaixonada, sofrida, glacial, desolada, tocante. Um ano depois dos EP’s “Dreary Town” e “Aching Bones”, sob a batuta do produtor Ben Hillier, Shah consegue fazer um dos melhores álbuns de estreia dos últimos tempos.

Estando a sua música perto do universo sonoro de nomes como Marianne Faithfull, Bad Seeds ou PJ Harvey, Nadine afirma que as cantoras que mais a inspiram são Nina Simone e Maria Callas, mas nós arriscamos incluir na lista Anna Calvi e, em momentos mais extremos, a diva negra Diamanda Galás.

Analisando individualmente cada canção deste disco, sentimos uma identificação própria de uma coleção de temas que libertam uma forte energia, sendo mesmo possível sentir cheiros e ambientes em músicas com o primeiro single, “To Be a Young Man”, a remeter-nos para climas decadentes de um pub à beira do colapso, ou “Filth Game”, que resulta de uma matemática musical nascida dos ecos de uma corrente pós-industrial, onde a voz quase declamada (por vezes acompanhada por um clone fantasmagórico) deixa correr o piano de forma livre.

Por sua vez, “Dreary Town” surge como uma lindíssima valsa negra que nos leva a dançar num vórtice melancólico e carrega um pesado testemunho sobre o suicídio de um ex-companheiro de Shah, que não suportou as agruras de um distúrbio bipolar. Também de uma intensidade dramática assinalável, “Remember” é outro excelente exemplo de uma alma atormentada por sonhos e recordações alimentadas por um piano sofrido e alguns metais que sobem uma escadaria de emoções contraditórias.

Um dos momentos mais belos do disco é “Runaway”, uma clara ode ao amor decadente e onde o fantasma de Polly Jean Harvey é por demais evidente – “To Be a Young Man” é outro exemplo dessa filiação. A bateria marca o ritmo e as guitarras arranham o exorcismo do refrão desta maravilhosa canção. Outro momento que preenche a alma de quem se aventura em “Love Your Dum and Mad” é a balada blusy “All I Want”, que navega por um rio eletrónico minimal que vai desaguar bem no coração do ouvinte.

Seguidas, “The Devil” e “Floating” refletem sentimentos opostos dentro de um álbum que foi pensado ao longo de quatro anos e que teve nos já referidos EP’s dois momentos de preparação. Se, no primeiro caso, o som “descarnado” de “The Devil” revela a tentativa de fazer uma canção crua e direta, na hipnótica “Floating” existe uma noção aveludada de contar uma estória lírica.

O álbum fecha com “Winter Reigns”, mais um conto em formato canção envolto de uma simplicidade desarmante. É mais uma vez o piano que confere maior intensidade dramática, mas é, sem dúvida, a voz de Nadine Shah que se assume como o mais valioso instrumento em “Love Your Dum and Mad”. Sem qualquer entrave seguimos Shah quando ela nos sugere: “Walk with me down this busy street…”. É inevitável acompanhar o canto desta sereia.

Mais do que ter a noção deste ser um grande disco é inato perceber que a magnífica voz de Shah é a grande mais-valia do mesmo. A intensidade dramática oscila de acordo com a cadência vocal desta mulher, que compreende como poucos a verdadeira e preciosa e madura relação entre o ato de cantar e o som instrumental que serve de contexto. Verdadeiramente assombroso.

Alinhamento:

01. Aching Bones
02. To Be a Young Man
03. Runaway
04. The Devil
05. Floating
06. All I Want
07. Used it All
08. Dreary Town
09. Remember
10. Filth Game
11. Winter Reigns

Classificação do Palco: 9/10

In Palco Principal

“A segunda vinda de Cristo”
de John Niven

Louvado seja Deus… ou qualquer coisa assim do género

 

“Mas que raio está a passa-se lá em baixo?”. A pergunta é da responsabilidade de Deus aquando de uma reunião que junta os santos João, André, Pedro e Mateus e Jesus Cristo, seu adorado descendente.

Estamos em 2011 e Deus regressou de uma merecida pausa de 400 anos de férias e encontra a Terra num caos sem memória. Conflitos bélicos, fome, miséria, desespero e, para seu grande espanto, milhões e milhões de cristãos, cada qual professando uma liberal e conveniente interpretação da Bíblia.

Longe vão os tempos e ideias do Renascimento e o grande Criador está desesperado pelo destino que o planeta levou na sua ausência e apenas encara uma possibilidade, extrema diga-se, de recuperar a sanidade terrena. Sim, Jesus – não, não falamos de nenhum porto-riquenho – tem de voltar à Terra e pregar o mais importante dos mandamentos: “Sê Simpático”.

Assim, Jesus Cristo – JC para os amigos – renasce no Midwest americano aos 31 anos em versão grunge e tenta seguir o sonho de muitos jovens: ser músico. No seio de uma comunidade composta por uma crescente trupe de disfuncionais, que inclui viciados em estupefacientes e álcool, prostitutas, traumatizados de guerra e seropositivos, Jesus é convencido a participar no reality show “Estrela Pop Americana” e parte para uma das maiores aventuras da sua longa (omni)existência.

À medida que as páginas avançam a divertida estória envolve de tal forma o leitor que é impossível largar o livro por muito tempo e, acreditem, é inata a vontade de fazer parte desta nova profecia que percorre milhares de quilómetros até chegar à verdadeiramente infernal Los Angeles.

Sem qualquer tipo de amarras ou preconceitos, o escocês John Niven arma-se de uma irreverente e hilariante escrita e transforma “A segunda vinda de Cristo” (Alfaguara, 2013) numa tresloucada desventura rock and roll em forma de bizarra epifania junkie que não desdenharia aos britânicos Monty Python.

Aqui, Deus fuma charros e é adepto de saladas – tal como Jesus -, os santos adoram satirizar a existência humana ao sabor de uma valente sessão de copos, Hitler e Reagan servem à mesa no restaurante infernal, Satanás é um justiceiro carnívoro convicto e ficamos a saber que Dante, afinal, se enganou no número de círculos do Inferno.

Com um humor afiado e muito inteligente, Niven, desafia dogmas e ataca algumas das heranças do desenfreado movimento capitalista que transforma as pessoas em massa anónima e amorfa e que integram uma sociedade consumista onda a obsessão pela fama é realizada com o auxílio de uma escala de mediocridade cultural.

Desconcertante e simplista, Jesus, o Cristo, filho de Deus pois claro, afirma que a salvação da humanidade é possível e está apenas à distância de uma guitarra, um pequeno amplificador e a eterna vontade de ajudar o próximo. Ámen?

In Rua de Baixo

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

“Beyond: Duas Almas”
Antevisão

O futuro aqui e agora



Ainda que com data de lançamento marcada para o início de outubro, a equipa da Rua de Baixo já teve o privilégio de sentir em primeira mão as emoções de “Beyond: Duas Almas”, um exclusivo PS3 que representa a mais recente e aliciante aventura em forma de jogo de consola da responsabilidade dos Estúdios “Quantic Team”.

Depois do aclamado “Heavy Rain”, David Cage volta à carga e assume as rédeas do argumento e realização de “Beyond: Duas Almas” mas desta vez os patamares de exigência são mais ambiciosos.
Mas que um simples jogo de consola, “Beyond: Duas Almas” tem a ousadia de virar mais um importante capítulo na evolução do conceito de entretenimento e encurta a linha que separa a sétima arte dos videojogos exibindo um novo motor gráfico, uma aventura envolvente e sugestiva, características sinónimas de inúmeras horas de puro prazer.

O elenco do jogo é formado pelas estrelas de Hollywood Ellen Page e William Dafoe que assumem os personagens de Jodie Holmes, uma rapariga com poderes sobrenaturais e que tem como companhia uma entidade invisível, e Nathan Dawkins, um cientista que estuda a estranha ligação entre a racionalidade e o transcendente. Quanto à própria narrativa será um género de puzzle onde a ordem cronológica não entra nas contas.



Nos dois blocos de jogo que tivemos acesso, sentimos que estamos perante um jogo charneira em termos de desenvolvimentos técnicos onde a captação de movimentos e as expressões faciais dos protagonistas atingem níveis de “perfeição” até hoje nunca vistos. Com isso o jogo ganha mais emoção e o jogador sente-se parte da cena em si mesma.

O game play é de um realismo assinalável e torna impercetíveis as passagens entre a “normal” narrativa e as cut scenes. Outra característica que eleva os níveis de emoção e veracidade é a utilização de uma abordagem visual em forma de “câmara subjetiva” levando o jogador, literalmente, para dentro do ecrã.

“Beyond: Duas Almas” assume-se como um limite dentro das próprias fronteiras entre realidade e virtual e promete deixar muitas almas boquiabertas. Agora, resta (des)esperar até outubro.

In Rua de Baixo

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

“Stealth Inc. – A Clone in the Dark”
PS VITA

Aventuras e diversão indie em formato 2D


 
Por vezes, a aproximação de fórmulas e contextos em forma de entretenimento funciona sem reservas. No mundo das consolas de jogos existem inúmeros exemplos que demonstram que se feito com conta, peso e medida, é possível ter sucesso com uma ideia simples.

É isso que a Sony tem feito com a PS Vita com resultados a todos os níveis bastante satisfatórios. Depois da monocromática aventura de “Limbo”, dos momentos gore de “Hotline Miami” e da filosofia arcade de “Velocity Ultra” chega a vez de “Stealth Inc. – A Clone in the Dark”, um jogo de plataformas repleto de ação e perícia que surge no seguimento do trabalho que a Curve Studios tem desenvolvido depois do lançamento de “Stealth Bastard Deluxe – Tactical Espionage Arsehole”.

Baseado no conceito stealth de jogos como “Metal Gear Solid” ou “Super Meat Boy”, em “Stealth Inc.” o jogador assume os comandos de um clone amarelo de “olhos” esverdeados que tem como missão passar inúmeros testes de forma a escapar do laboratório que o mantém refém e que apenas pode confiar nos seus instintos, destreza e poder de dissimulação.



Semelhante a outros jogos de natureza 2D, “Stealth Inc. – A Clone in the Dark” vale-se, acima de tudo, da genialidade da própria ação e objetivos e o facto de não existirem diálogos não torna o jogo menos atrativo.
A cada nível que se ultrapassa pede-se mais atenção e rápida capacidade de raciocínio de forma a conseguir chegar ao terminal final sem ser notado. Pede-se descrição total e habilidade de agir na sombra, evitando assim ser detetado por câmaras de vigilância e outras unidades que patrulham a área.

A falta de cuidado leva, obviamente, a castigos vários e o nosso herói fica automática e literalmente com a cabeça a prémio, mas se a fuga for bem-sucedida não pense que os seus inimigos não estão atentos. Rapidamente os guardas vão analisar e rever o sistema de segurança de forma a complicar ainda mais a tarefa do nosso clone.

Com um nível e dificuldade e entusiasmo crescentes, as aventuras em “Stealth Inc. – A Clone in the Dark” dividem-se em oito setores diferentes cada qual com o mesmo número de níveis a ultrapassar. A plenitude da vitória assegura-se com uma passagem incólume, ou seja, sem ser visto ou apanhado pelo sistema de segurança uma única vez.

A tentação em ser rápido e certeiro é grande e nada como tentar fazer depressa e bem. Para isso acontecer “basta” ter excelentes reflexos, uma memória de elefante e ter noção que a morte pode ser um lugar-comum com direito a múltiplas repetições até conseguir estar perto da perfeição. Apaixonante e viciante, “Stealth Inc. – A Clone in the Dark” é também um teste à capacidade de superação e de nervos do jogador.



A felicidade, lá está, é o prémio a ganhar mas a superação em si mesma é outro dos objetivos pois mesmo depois de um nível ser ultrapassado é possível regressar a tal plataforma mas desta vez armados com habilidades e truques novos como por exemplo um fato camuflado ou um “isco” holográfico que engana robots e câmaras de vigilância.

O dinamismo gráfico que cada nível observa é uma das grandes conquistas deste jogo que se serve do brilhantismo do écran da PS VIta para se fazer notar ainda mais. Aos poucos a consola portátil japonesa ganha o merecido protagonismo.

Mas não pensem que as surpresas do jogo ficam por aqui. Depois – ou antes, a decisão é sua – de terminar as missões de “Stealth Inc. – A Clone in the Dark” pode e deve explorar o editor de níveis disponível. Ultrapasse os seus limites e apresente níveis diferentes aos seus amigos sendo que é possível transferir os mesmos para o “live room” – através da funcionalidade cross play – da PS3 ainda que nesse ambiente não possa tirar partido do gozo que o touch screen da VIta permite.

De forma a promover este divertido jogo nas diferentes plataformas do mundo Sony, a Curve Studios oferece duas dezenas de níveis bem como conteúdos adicionais em forma de DLC. Para ter acesso a tal siga o exemplo do nosso clone: seja rápido e certeiro!

In Rua de Baixo

terça-feira, 6 de agosto de 2013

“A RAPARIGA DOS SEUS SONHOS”
de DONNA LEON

A insustentável beleza da investigação policial



Quem já leu alguma das obras escritas pela norte-americana Donna Leon, sabe que os seus livros são mais que meros policiais que reúnem, na sua trama, a soma de pistas de forma a resolver um crime; revelam-se antes um acontecimento que vai para além das margens de um rio que corre em ritmo próprio, como é o caso da Lei que regula a sociedade.

Tal como nos outros romances que têm como figura central o commissario Guido Brunetti, bem secundado pelo ispettore Vianello, “A Rapariga dos Seus Sonhos” (Planeta, 2013) faz um retrato de uma sociedade italiana que luta contra os eternos fantasmas da Máfia, da corrupção e da discriminação contra as minorias étnicas, assim como da apropriação da fé e desespero que resultam na criação de seitas que tentam salvar a alma das gentes.

Depois de ver os seus livros traduzidos em mais de duas dezenas de idiomas, tornando-se numa das mais conhecidas e apreciadas vozes do romance policial, a escritora natural de Nova Jérsia continua dona de uma escrita irrepreensível e repleta de um especial salero, que transformou a série protagonizada pelo carismático Brunetti num autêntico sucesso à escala global.

Ao contrário de outros atormentados personagens dos livros policiais, Guido é um homem normal, sem vícios, que tem na família o seu mais precioso aliado, sendo a sua companheira Paola a maior fonte de inspiração e os filhos Chiara e Raffi a verdadeira essência da sua existência. E é esta aparente “banalidade” que torna este homem ainda mais interessante e, acima de tudo, humano.

“A Rapariga dos Seus Sonhos”, nono livro de Donna Leon publicado pela Planeta, leva-nos mais uma vez ao coração de uma Veneza misteriosa e deveras atraente, que serve de palco para mais uma miríade de acontecimentos que vão colocar à prova os peculiares e intuitivos processos de investigação dos mais famoso comissário italiano da história da literatura.

A forma encantatória como Leon escreve envolve o leitor sobremaneira e, ao fim de algumas páginas ,deixamos o nosso habitat natural e passamos a sentir o cheiro das calles venezianas, assim como o doce ondular dos canais locais que se assumem como as estradas que percorrem o labiríntico trabalho das autoridades policiais lideradas pelo vice-questore Patta.

Na trama deste acutilante romance, Donna Leon mergulha Brunetti em mais uma intrigante aventura. No rescaldo do falecimento de sua mãe, o commissario é confrontado com um pedido de investigação do padre Antonin, um amigo de infância do seu irmão Sergio, que pretende saber pormenores de um homem que lidera a seita Filhos de Jesus Cristo.

Enquanto isso, numa manhã marcada pela intempérie, Brunetti e Vianello deparam-se com o aparecimento de um cadáver de uma menina de onze anos a flutuar no Grande Canal. As posteriores investigações levam a concluir que a criança era de etnia Romani, tinha consigo algumas joias e revelava indícios de atividade sexual. Estranhamente, ninguém comunicou o desaparecimento de Ariana bem como dos objetos que trazia consigo.

À medida que Brunetti aprofunda o caso, o commissario começa a sentir a presença da princesa dos cabelos de oiro dos seus sonhos e inicia uma errática viagem pela busca da verdadeira identidade da menina e da sua família e, pelo caminho, tropeça em segredos que servem de muro para proteger entes queridos cuja salvação pode estar para além do simples conceito de inocência ou culpa.

Com a ajuda de Vianello e dos sempre pertinentes conhecimentos da Signorina Elettra – secretária de Patta -, Brunetti vive uma das mais empolgantes e duras investigações da sua carreira, tendo como principais inimigos o preconceito institucional e os inúmeros ramos de uma criminalidade encapuçada.

Naquele que é mais um excelente exercício narrativo em forma de romance policial de características literárias, “A Rapariga dos Seus Sonhos” é, sem dúvida, um dos melhores livros de Donna Leon e um companheiro obrigatório para quem gosta de uma estória repleta de mistério e reflexão, assumindo-se simultaneamente como um espelho de uma sociedade presa a si mesma.

In Rua de Baixo

“TRANS IBERIC LOVE”
de RAQUEL FREIRE

Não se vive sem amor



Natural do Porto, Raquel Freire (entrevista Rua de Baixo) é uma mulher de muitos ofícios: argumentista, realizadora, produtora, encenadora, ativista, cronista e agora escritora.

“Trans Iberic Love” (Divina Comédia, 2013) marca a estreia da realizadora de filmes como “Rio Vermelho” ou “Rasganço” no mundo dos livros e, tal como acontece com as suas obras cinematográficas, também a sua escrita é direta, apaixonada e fraturante.

Longe de qualquer tentativa autobiográfica, “Trans Iberic Love” conta a estória de amor de Maria e José, duas almas atormentadas por uma conjuntura sociocultural opressiva para com o que é marginal, aqui entendido como fora da norma.

Raquel Freire apresenta dois personagens que pretendem uma definição de (trans)género, seja ele enquanto indivíduo ou pessoa sexual. Ela, Maria, é uma escritora portuense que tem Marx como grande mentor, lutando por um novo ideal em forma de cidadania através de uma atitude ativista. Ele, José, também ela, Eva, um sociólogo catalão que estuda e defende, afincadamente, o fim da dicotomia sexual dos géneros.
Em comum, Maria e José juntam vários parâmetros e afinidades que se adensam num mundo, e principalmente numa Europa, que vive sérios problemas económicos cujas ajudas podem, de certa forma, representar uma perda de identidade e independência dos próprios estados enquanto nação.

É neste contexto que Maria aposta, de corpo e alma, nas novas abordagens da visão feminista e procura uma sexualidade mais abrangente, enquanto José busca um pathos de contornos “trans” que rasgue as balizas dos conceitos de homem e mulher, definições que não têm necessariamente de ser opostos.

A livre circulação na União Europeia serve de metáfora para a abordagem que os dois personagens fazer da própria vida, da libertação de uma personalidade que não pode ficar apenas presa ao âmago da sua existência sob pena de se tornar num elemento definitivamente castrador.

A “Revolução Pendente” faz-se no eixo Porto-Lisboa-Paris-Barcelona, enquanto Raquel Freire explora elementos da cultura nacional – nomeadamente através da geração que cresceu de acordo com os ecos de Abril – e pisca o olho a alguns rastilhos que nasceram da chamada “Geração Rasca”.

Tendo como base o amor, sentimento aglutinador, Maria e José lutam por uma sociedade mais justa procurando fugir ao vulgar estado de androginia enquanto conceito fechado em si mesmo. “Trans Iberic Love” é um alerta contra a intolerância e os fragmentos alternados que dão voz a cada um dos personagens têm, como um dos maiores méritos, introduzir um novo tema a debater na literatura nacional, agitando consciências e “medos” que podem ferir algumas suscetibilidades.

Este romance arrebatador assume também ele vários géneros, luta contra preconceitos e pode ser visto enquanto uma aventura, um jogo ou uma projeção cinematográfica que mistura realidade, ficção e acima de tudo o desejo, ainda que descarnado da conotação sexual e direcionado para a vontade de Maria e José se sentiram inteiros, unos, completos.

In Rua de Baixo

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

“INFERNO”
de DAN BROWN

A utopia da equação do apocalipse populacional



Depois de vários milhões de exemplares vendidos em todo o planeta, Dan Brown volta à carga com “Inferno”, um livro que gerou uma galopante expectativa à medida que se aproximava a sua aparição nas livrarias.

Os mais céticos temiam por uma “sequela” do menos atrativo “O Símbolo Perdido”, mas, felizmente, a nova aventura do professor universitário de Harvard e especialista em simbologia Robert Langdon por terras de Itália revela-se bastante atrativa e, como é apanágio de livros como “O Código da Vinci” ou “Anjos e Demónios”, estamos perante um livro repleto de mistério, aventura e ação.

Como em todas as obras de Brown, “Inferno”, editado pela Bertrand, pode ser lido e entendido sob várias e diferentes perspetivas e como um bom thriller nem tudo o que luz é ouro. Apesar de ter chegado a Portugal no início de julho, nos Estados Unidos, a mais recente obra do autor de “Código da Vinci” foi lançada no dia 14 de maio (14/5/13), data que serve de anagrama ao valor do PI (3,1415), fazendo também alusão aos círculos do Inferno mencionados na obra maior do italiano Dante Alighieri, “A Divina Comédia”.

E é mesmo o longo e poético texto épico de tendências teológicas que se encontra concentrado no âmago de “Inferno”, definindo toda a ação do livro e que vai guiar Langdon e seus companheiros de aventura ao longo das 24 horas mais agitadas do conhecido especialista da arte de interpretar símbolos.

Desta vez o nosso herói fanático por casacos de tweed está em Itália e vê-se obrigado a tentar anular uma ameaça de praga global desencadeada por um vírus micro orgânico. Sem saber a razão e sob um estado amnésico, Langdon vê-se numa cama de um hospital de Florença e alguém atenta contra a sua vida.

Felizmente, Sienna Brooks, uma jovem e muita atraente e peculiar médica, consegue salvar Robert numa primeira instância dando início a uma vertiginosa viagem pelas ruas de Florença. Para complicar a tarefa desta dupla improvável, o único auxílio que professor e médica têm para se guiar é uma réplica manipulada de “O mapa do Inferno”, a célebre pintura de Sandro Botticelli, um dos expoentes máximos do Renascimento italiano.

Todos os acontecimentos apocalípticos retratados em “Inferno” estão diretamente ligados a Bertrand Zobrist um multimilionário transumanista, especialista em investigação genética e fanático pela obra de Dante, que criou uma terrível praga que se ativada em 24 horas significará o fim da humanidade como a conhecemos.

Assim, está nas mãos de Langdon e Brooks descobrirem a localização desta bomba terminal e evitar que o vírus passe de ameaça a realidade. Tal como como é seu apanágio Brown leva Robert Langdon por caminhos repletos de enigmas que apenas podem ser descobertos através da decifração de códigos, pistas várias e símbolos crípticos que entretanto forma deixados pelo génio louco de Zobrist que encontrou proteção através dos préstimos de uma organização-sombra conhecida como “O Consórcio”, liderada pelo também ele enigmático preboste.

Para além de garantir o anonimato da obra Bertrand Zobrist, o Consórcio tinha como outra das suas missões a difusão de um vídeo idealizado pelo cientista mas o seu perturbante conteúdo levou a organização a quebrar o rígido protocolo.

Pelo meio desta bem pensada e coesa narrativa surgem outros personagens que serão importantes para o desfecho desta alucinante aventura digna de um filme de Indiana Jones versão século XXI. Elisabeth Sinskey, a maior inimiga de Zobrist, representante máxima da Organização Mundial de Saúde, bem como figuras secundárias como diretores de museus por onde Landon e Sienna passam ou simples condutores de barcos pelas águas de Veneza assumem-se como peças essenciais ao imenso puzzle que é o mais recente livro de Dan Brown e em que qualquer pormenor é decididamente essencial.

Nesta obra verdadeiramente cinematográfica e que obriga o leitor a devorar as páginas do livro de forma compulsiva, o autor, como habitualmente, tem a mestria de fundir temáticas e assuntos díspares que torna a narrativa num cruzamento entre revisitação histórica e cultural, com uma perspetiva de divulgação turística, assim como um alerta para questões cada vez mais emergentes como, neste caso, os problemas da sobrepopulação e a falta de recursos naturais sentida por um planeta à beira de um colapso existencial.

Se em alguns casos estes elementos assumem um papel enriquecedor para a própria trama noutras ocasiões causam quebras de ritmo. Exemplos desse travão são as muitas descrições dos locais onde decorre a ação, o exaustivo recorrer ao filme elaborado por Zobrist ou a escusada e repetitiva menção aos “óculos de marca” do Dr. Ferris.

A forma como Dan Brown refere e apresenta a causa transumanista é outra das mais-valias desta obra. Tal como qualquer teoria levada ao extremo, a sua “má” interpretação leva a fundamentalismos. Neste caso, estamos próximos de um revivalismo da eugenia, pensamento que levou a ciência nazi a procurar desenvolver a raça ariana em detrimento das outras por eles consideradas menores. Segundo o “Inferno” de Brown, no caso dos transumanistas o que se pretende é uma mutação induzida que ative certas sequências genéticas tendo como o futuro da espécie o ser “pós-humano” que no fundo é uma forma de tornar a evolução do Homem imediata afastando-a no normal processo gradual.

Teorias à parte, “Inferno” é um livro absolutamente imperdível para os fãs de longa data de Dan Brown e para todos os que querem passar boas horas na companhia de um thriller repleto de suspense, com uma pitadas de ficção científica, e que combina um tema muito interessante com uma narrativa fluida, concisa e altamente viciante, no fundo ingredientes habituais nos livros do autor norte-americano.

In Rua de Baixo