terça-feira, 2 de julho de 2013

Michael Nyman
CCB 28 de junho de 2013

O Desafio do Silêncio



A música é, sem qualquer tipo de dúvida, uma das formas mais completas de comunicação. Associar sons, ritmos e andamentos díspares a situações, sentimentos e estados de alma é consequência direta daquilo que a música representa para o ser humano enquanto ouvinte.

Se à qualidade inata da música se lhe juntar a cumplicidade com o artista que a cria o ciclo atinge limites onde a perfeição simplesmente acontece.

Quem teve o privilégio e a felicidade de estar entre o público que encheu a sala principal do Centro Cultural de Belém na passada sexta-feira sentiu momentos de uma delicadeza e sensibilidade ímpares, minutos que se sucediam numa cadência que apenas seriam perturbáveis pelo fascínio da arte de se tocar um piano que não é mais que o prolongamento da alma de quem está a manobra-lo, a tocá-lo, a fazê-lo viver.

E é isso que o britânico Michael Nyman faz com o seu Steinway. Das teclas brota poesia, da música que nasce do simples toque acontece magia. Por vezes, ao fechar-se os olhos num concerto de Nyman imaginamos mais que um homem ao piano, sonhamos com uma orquestra que manobra o onírico de forma sublime.

E como o sonho comanda a vida, aos 69 anos, Nyman é um homem realizado, seguro, um artista que tem na sua obra a razão de viver, e as cinco décadas que passou em frente a um piano conferem-lhe uma experiência excecional. Nesta sua mais recente digressão, Nyman junta à sua música outra paixão: o cinema. A “Solo and Cine Opera” é sinónimo de uma miscigenação entre o som e a imagem e o resultado são espetáculos sensíveis, intensos, intimistas e completamente inesquecíveis.

Conhecido por compor bandas sonoras para filmes como “O Piano”, “O Fim da Aventura” ou “Gattaca”, o músico nascido em Stratford, Londres, decidiu agora dar alma a alguns filmes que realizou aquando das suas muitas viagens bem como pintar musicalmente outros fragmentos fílmicos.

Num palco espartano, temos um piano, colocado à esquerda, que serve de legenda para o centro do palco ocupado por uma tela negra. Enquanto se aguarda pela entrada do músico, sente-se uma atmosfera tranquila que nem a ausência de luz questiona. Quando Nyman entra em palco e se ouvem as primeiras palmas cresce a certeza que aquela próxima hora e meia será um dos momentos mais belos que os ouvidos presentes vão sentir durante a sua existência.

Ainda que seja a música o grande elo aglutinador na noite é a imagem que abre um concerto. Numa cadeia especial, a imagem inspira Nyman que depois, já ao piano atira-se a percorrer a sua longa carreira incidindo em peças de várias bandas sonoras da sua autoria.

Trajando de vestes escuras e seguro por detrás de uns peculiares e já familiares óculos, Nyman percorre, numa primeira abordagem composições de “Wonderland”, obra que nos faz recuar até 1999. Desta que seria a sua primeira colaboração com o cineasta Michael Winterbottom somos premiados com duas faixas. Num disco cujas músicas são nomes, cabe a “Franklin”, “Debbie” e “Jack” a honra de agraciar os presentes.

As mãos de Michael Nyman percorrem as teclas com uma cadência perfeita que encontra na tela uma maravilhosa ligação. O músico segue atentamente as imagens e coordena com as mesmas os seus andamentos. Depois de imagens onde alguma violência contrasta com a solenidade da música, surgem apontamentos que têm no inverno da existência o seu sumo. Imagens de idosos trazem consigo a triste consciência da solidão que a cor e o preto e branco do filme alternam com a azáfama de uma urbe que torna cidadãos em peças anónimas.

Sem interrupções, Nyman segue de pauta em pauta, livra-se das mesmas atirando-as para o chão depois de uma música terminada e espera pelas imagens para seguir viagem. A próxima paragem seria “Gattaca” e “The Morrow”, “Became Jerome” e “The Departure” são reduzidas à condição mínima de um piano solitário. Longe de 1997, do futuro ou de outra qualquer data, a música vibra pela sala e as sensações sentem-se na pele, os impulsos chegam rapidamente à alma.

A metáfora musical de Nyman prossegue e as imagens de “Love Train”, um filme que mostra a união entre duas carruagens de um comboio “apaixonado”, que simboliza as próprias relações humanas assentes em carris que por vezes proporcionam distanciamentos ou aproximações. Antes, foram os sons de “O Fim da Aventura” a ditarem o andamento musical. De seguida, sob uma música subtil, a desafiar o próprio silêncio, somos confrontados com uma imagem dúbia que se revela ser o reflexo de um espelho partido num café algures. O filme denominado “Privado” tem o som resgatado à banda sonora de “O libertino” e no ar soam as pinceladas românticas de “This Mistress. Depois, “The Witness I” mostra retratos de pessoas comuns, gente que a memória desafia.

“A Story of Cinema, part 67” é a partitura visual que se segue e é difícil aos presentes esconder a emoção que é ouvir alguns temas do mais conhecido trabalho do compositor. De todas as aventuras cinematográficas de Nyman é inquestionavelmente “O Piano” de Jane Campion, obra de 1993, que colocou definitivamente o britânico do imaginário de todos. “My Big Secret” ou “The Heart Ask Pleasure First” encheram a sala do CCB de emoção e carinho.

Sentia-se que o público queria aplaudir, agradecer, mas o pianista seguia o seu trajeto sendo o filme de Jean Vigo e Boris Kaufmen, “A Propos de Nice”, a peça seguinte. Este que é o mais longo tema da atuação de Nyman revela toques de uma burguesia opulente onde a sensualidade esconde-se e revela-se onde menos se espera.

Depois da sentida interpretação Nyman vai até ao centro do palco, faz uma tímida vénia e recebe, finalmente, a merecida ovação da audiência. De regresso ao piano, é a vez de “Morra” encantar os presentes, composição marcada por um som altivo e (muitíssimo) competente. No final da interpretação, o músico sai brevemente do palco, debaixo de muitos aplausos e acaba por regressar de seguida para tocar “Horizoints I”. Desta vez a imagem divide a atenção entre paisagens marítimas e terrestres.

O final deste recital levou o britânico de volta ao centro do palco e, manifestando algum cansaço, despede-se da audiência, acenando e aplaudido os presentes. Lá fora a noite quente de verão convidava a passear mas o coração ficou, em parte, dentro da sala.

Imagem: http://www.colstonhall.org/whatson/Event3478

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