quarta-feira, 5 de junho de 2013

“O IMPOSTOR”
DAMON GALGUT

O inesperado destino de Adam Napier



Finalista do prestigiado “Man Booker Prize”, o sul-africano Damon Galgut é uma das mais brilhantes vozes da nova literatura feita por terras de África. Depois de em 2011 “Um Quarto Desconhecido” ter sido editado pela Afaguara, eis que a mesma chancela nos faz agora chegar “O Impostor”, um livro que vem confirmar a qualidade inata da escrita de Galgut, para muitos um autor cuja prosa remete para universos que encontram, em J.M. Coetzee e Nadine Gordimer, um paralelismo assinalável.

Em “O Impostor”, Galgut oferece-nos um romance que atravessa um pouco da realidade que a África do Sul teima em ser sinónimo. A acção decorre numa comunidade remota denominada Karoo e relata a estória de uma amizade entre dois homens, brancos, muito diferentes entre si.

Se de um lado temos um personagem passivo, um observador irónico de uma sociedade cristalizada, do outro surge-nos uma figura optimista, repleta de esquemas, que acredita verdadeiramente que pode moldar essa mesma sociedade à sua imagem, ainda que se refugie em sentimentos mesquinhos onde a vingança é o seu grande motor. Falamos de Adam Napier e Keneth Canning, dois homens com percursos de vida díspares e uma experiência comum enquanto colegas de escola, que acaba por ser o motor deste inesperado reencontro.

Napier, um homem na casa dos quarenta anos, acaba de chegar a Karoo por intermédio do seu irmão Gavin depois de ficar sem trabalho, sendo vítima da discriminação positiva que se vive na África do Sul, e pretende começar de novo. A ambição de ser poeta, um sonho de vida, leva-o a rejeitar outras perspectivas, embora Gavin pense que se trata de um acto desesperado.

Ainda que orgulhosamente só, Adam decide aceitar a ajuda do irmão e vê-se a habitar numa inóspita casa nos limites de Karoo, muito longe da sua Joanesburgo natal. Os primeiros passos de Napier na sua nova comunidade são tímidos e, imediatamente, sente que aquela casa decrépita é o seu único consolo, assim como a literatura que lhe brota do coração. Numa das poucas idas à “civilização” para se abastecer, o destino prega-lhe uma partida que vai mudar a sua vida. Um estranho, Canning, identifica-o como um antigo companheiro de escola que, em tempos, lhe salvou a vida. Lutando contra a memória, Adam não se recorda de tal personagem mas, aos poucos, decide embarcar nesta amizade perdida, muito por culpa daquilo que Canning tem ao seu dispor: uma incrível e luxiriante riqueza herdada do pai em forma de reserva de caça. Ainda assim, não é o dinheiro de Canning que mais cativa Adam. Baby, a fascinante e negra mulher de Canning, é sim uma fortuna que, aos poucos, seduz Napier.

Depois do casual encontro, o “Fraldas” – alcunha que Adam ganhou aquando dos anos de escola – envolve-se irremediavelmente num jogo perigoso, que revela alguns dos tiques da sociedade sul-africana que ainda não conseguiu arredar definitivamente as memórias do Apartheid. A corrupção, a vingança, a (inevitável) luxúria e a traição são sentimentos que, ao longo do livro, nos ajudam a conhecer melhor as interessantes e intrigantes personagens de “O Impostor”.

A tensão – ainda que dolente – que brota da leitura deste livro é uma das maiores qualidades da escrita irrepreensível de Galgut que tem, em Canning, um dos seus personagens mais aliciantes, e que se afigura como uma espécie de Gatsby africano mas sem qualquer ponta de glamour.

A estranha combinação entre uma personalidade que deambula entre uma infantilidade onírica e um empresário corrupto transforma Canning numa pessoa ensimesmada, medrosa, que mistura afabilidade com desconfiança e que o ódio ao pai apenas ganhou forma ao longo dos anos.

Galgut tem também o mérito de fazer um contraponto ético entre a riqueza e a obscenidade que pode dela resultar. Mais, a falência financeira e psicológica de Adam é um importante desígnio no avançar desta envolvente trama, que prende o leitor a cada palavra lida, a cada página deixada para trás. A escrita limpa, eficiente e muito polida de Galgut torna este romance altamente apetecível em vários factores. Se de um lado estamos perante uma trama onde o crime de certa forma convencional é o grande leitmotiv, por outro surge-nos um homem inocente que é arrastado para um mundo que desconhece e tarda em entender.

“O Impostor” assume-se (também) como uma crítica à realidade sul-africana, que não consegue libertar-se de uma atmosfera construída à conta da crueldade e de um materialismo áspero e bacoco. Se, no início da obra, Galgut tem alguma dúvida em saber se é a alma poeta de Adam ou o pragmatismo capitalista de Gavin que exemplificam de certa forma o novo homem africano, essa resposta vai sendo cada vez mais nítida ao longo das mais de 300 páginas deste livro. No fundo, este romance funciona como uma fábula, uma parábola. A obra produzida por Damon Galgut está para além de simples interpretação, assumindo uma percurso onírico que se refugia numa lógica interna muito particular. “O Impostor” não tem quaisquer pretensões morais; não se retiram lições desta estória apesar de a mesma estar carregada de pequenos dilemas onde o sexo, a morte e a traição estão no seu epicentro. Este livro move-se através de sombras que afastam respostas que, face a si próprias, não são mais que uma ponte que nos leva a alguns dos recantos mais nublados das sociedades contemporâneas.

In Rua de Baixo

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