segunda-feira, 17 de junho de 2013

“LUZ ANTIGA”
de JOHN BANVILLE

Anatomia de Gray




Vencedor do Booker Prize em 2005 e um nome habitual no que toca à possível atribuição do Nobel da Literatura, o irlandês John Banville faz-nos chegar o seu décimo sexto livro, uma obra que vem confirmar a genialidade da sua escrita e de uma capacidade invulgar de contar uma estória assente nos paralelismos existentes entre a imaginação e uma memória que pode ser disfarçada e moldada pelo desejo em si mesmo.

“Luz Antiga”, uma responsabilidade editorial da Porto Editora, relata a existência, ou retalhos da mesma, de Alexander Cleave, um actor em fim de carreira que busca nas suas recordações de vida uma forma de fintar o presente assombrado pela morte da filha.

As memórias de Cleave levam o leitor a conhecer pormenores, deliciosamente escritos sob um lirismo desarmante, do (seu) errático primeiro amor enquanto rapaz de 15 anos que teve a “fatalidade” de conhecer a paixão através de um sórdido romance com a senhora Gray, a mãe do seu melhor amigo e vinte anos mais velha.

Os jogos de linguagem utilizados por Banville são características de uma escrita que se eleva através de uma exuberante forma, de enredos envoltos de uma complexidade sedutora, assim como de um poder realista e sofisticado herdado, como o próprio autor assume, da sua sofreguidão pela obra de Henry James.

Ao longo das 260 páginas deste romance, que tem no amor e na perda os seus motivos maiores, somos transportados para uma aldeia irlandesa situada no litoral onde o “velho” Cleave se refugia no sótão de sua casa (e cabeça), procurando num espaço exíguo recuperar o equilíbrio que a perda de Cass, filha que nasceu do seu enlace com Lydia – sua actual companheira -, representa.

Enquanto varre a memória ou a ilusão dos tempos passados e recorda, apaixonadamente, a proibida relação com a mãe de Billy Gray, é confrontado com uma situação invulgar, ao ser contactado para encarnar a biografia em forma de filme de Axel Vander, um ilustre desconhecido que “roubou” a identidade de outrem, passando a assumir uma personalidade que não a sua, ou seja, representado um papel que não o seu.

Para melhor conhecer a vida de Vander, Cleave estuda a mesma através de um livro escrito por um enigmático – ou talvez não – J.B., que mostra um homem que bem poderia ser um anagrama de si mesmo.

Aquilo que mais impressiona na escrita de Banville é a sua maravilhosa linguagem, composta por linhas que incorporam uma poesia assente por uma aliteração, assonância e cadência própria, e que transformam o Abril da adolescência de Cleave numa mistura de descoberta, paixão, entrega, sexo e sentimentos febris. E são, nesses momentos mais quentes de “Luz Antiga”, que as comparações com Nabokov de “Lolita” são de uma evidência assinalável.

A par da linguagem, também os corpos das personagens de Cleave e Gray estão revestidos de profundas camadas de um veludo especial, que ganham brilho quando o sol entra pela janela dos seus esconderijos apaixonados que nem vestígios de uma qualquer aurora boreal.

Mesmo os próprios relatos dos momentos mais banais conseguem deslumbrar. Uma caminhada numa manhã solitária em que todos os outros trabalham ou a descrição de um mendigo podem ser textos poéticos, bonitos, dedicados e donos da genialidade que apenas pertence aos proscritos.

Mas não é apenas o estilo da escrita de “Luz Antiga” que torna este livro numa das obras charneira do autor de “O Mar”. Quem segue a obra deste irlandês revê aqui tiques de outras estórias que o acompanham nas últimas duas décadas. Alguns dos personagens figuram em outros momentos literários de Banville, que tem em Alex Cleave, por exemplo, o herói nos seus livros mais recentes.

A voz narrativa é outras das peculiares formas da escrita de Banville, que rejeita o “vulgar” diálogo para tornar as personagens ainda mais sentidas. O passado é descrito com veemência e o amor, aquela paixão que não se esquece e marca, mantém acesa uma chama ténue que, num acto de confissão, se pode tornar pecado para quem se assume egoísta e culpado.

In Rua de Baixo

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