quinta-feira, 23 de maio de 2013

PARA LÁ DAS COLINAS
Cristian Mungiu

Os estreitos limites da tolerância



Depois de “Quatro meses, três semanas e dois dias” ter vencido, com todo o mérito, a Palma de Ouro em 2007, o realizador romeno Cristian Mungiu criou enormes expectativas quanto ao seu futuro como cineasta.
Passados seis anos, eis que a comunidade cinéfila tem a possibilidade de ver o muito aguardado “Para Lá das Colinas”, um melodrama directo, cru e honesto que marca a terceira experiência cinematográfica de Mungiu.

Ao contrário de “Quatro meses…” que era maioritariamente rodado dentro de quatro paredes de um hotel espartano na Roménia comunista, este “Por Trás das Colinas” extravasa essa ideia de certa forma “teatral” e abraça um novo conceito dentro do trabalho do realizador.

Com traços de uma contemporaneidade desarmante, “Para Lá das Colinas” relata a relação de duas jovens amigas, Alina (Cristina Flutur) e Voichita (Cosmina Stratan) que cresceram num mesmo orfanato e que, passado algum tempo, reencontram-se depois de terem decido dar novos rumos às suas vidas.
Alina, regressa à Roménia depois de ter passado uma temporada na Alemanha e quer resgatar a sua amiga e paixão. Relutante, Voichita, teme abandonar o mosteiro onde vive com outras mulheres e um sacerdote solitário e conservador. Esta comunidade refugia-se no amor a Deus por forma a combater a crueldade da solidão.

As tentativas de fazer Voichita abandonar o sacerdócio fazem Alina inventar uma série de estratagemas, incluindo uma tentativa de suicídio. A tolerância das noviças perde-se a cada desvario de Alina e quando esta se torna violenta, freiras e sacerdote apontam-lhe a possessão como a razão de tal estado de alma e decidem colocar em ação os instrumentos ao serviço da religião como o são o jejum e o exorcismo.
Durante cerca de duas horas e meia, Mungiu convida-nos a viver dentro da realidade do frugal e controverso mosteiro onde Voichita é confrontada com as suas convicções, com os seus dogmas. As interrogações de Alina levam a um crescente mau estar entre as personagens e o clima de hostilidade aumenta a cada momento.

Inspirado em acontecimentos reais estamos perante uma trágica fábula que reúne conflitos religiosos e amorosos. Este filme coloca o dedo na ferida da omnipresente e omnipotente força da igreja de um país que tem mais espaços religiosos do que escolas, uma nação que vive a religião de forma particular. Apesar da seriedade do tema, Mungiu tem a capacidade e a presença de espírito para povoar esta película com uma magia muito particular.

Uma das cenas que reflete tal capacidade leva-nos a assistir à leitura do Livro dos Pecados do Mundo pelas freiras, e ficamos a saber que existem 464 no total. De forma a manter Alina dentro dos domínios da “razão” religiosa, o sacerdote aconselha Alina a ouvir tais escrituras de forma a afastar a doença da descrença pois a procura da paz, feita através da confissão, pode não ser suficiente. Também a noção de pecado é redutora para o “Papá” e “Mamã” destas desamparadas noviças pois tal resulta de uma vida que vá contra as noções básicas da religião.

Com uma competência assinalável o realizador romeno consegue passar uma das ideias mais fortes deste filme e que se prende com o eventual “mau” uso da religião, ato que tem o poder de moldar mentes e comportamentos. E ciente que o cinema pode ser também um veículo de passagem, de transmissão de ideias, o realizador afasta-se de qualquer tentativa de juízo de valor dos seus personagens deixando-os respirar. A exigente e cética Alina não é apenas uma vítima em si mesma, o padre e as freiras flutuam no limiar da moral mantendo as boas intenções, Voichita procura preencher o vazio da solidão.

Muita da religiosidade das mulheres que vivem neste mosteiro, bem como de Voichita, foi herdada enquanto crianças, enquanto pessoas de mente recetiva, enquanto esponjas de cérebro inocente. O passado é uma dúvida premente e o espetador é convidado a adivinhar ou perceber o mesmo.

Ainda que possam surgir comparações entre este novo filme de Mongiu e “Quatro meses…” aqui o ambiente frenético dá lugar a um sentimento mais sereno e, de certa forma, conciliador. Com tal não se pretende passar a ideia que Mongiu opte por uma abordagem mais superficial, pelo contrário. A religião é um tema tão ou mais profundo que a ética mas a fé tem um papel fundamental perante qualquer juízo de valor.

Tecnicamente irrepreensível, o realizador romeno aposta numa bela fotografia sendo que cabe à câmara denunciar a cadência narrativa. Se por vezes Mongiu demora o plano de forma a passar um pormenor, um silêncio, um vazio, noutros casos a subjetividade da câmara anuncia agitação, caos, desespero.
“Para Lá das Colinas” é um filme fascinante que faz pensar nos conceitos de liberdade, amizade e livre arbítrio, a vários níveis, seja numa sociedade como a romena, seja em qualquer outro país no qual a religião continua a ter uma força determinante sobre a consciência coletiva pois as leis de Deus podem, eventualmente, ser colocadas em causa pelas leis do Homem enquanto ser finito.

“Para Lá das Colinas” roça o tormento espiritual sendo um teste à resistência do próprio espetador que é por vezes confrontado com momentos de alguma letargia ou agitação. Exemplo disso é outra das cenas mais marcantes do filme, quando Alina e Voichita se olham, sorriem e sentem a paz, ainda que esta seja funesta e efémera. Estas duas mulheres carregam uma cruz pesada demais, um destino à prova de qualquer esperança e cabe a nós, enquanto espectadores, fazer parte dessa Via-Sacra em forma de vivência cinematográfica.
Sem dúvida que “Para Lá das Colinas” é um duro osso de roer, é uma história forte baseada num sólido argumento e com duas atrizes que superam qualquer expectativa. Sem dúvida que o novo filme de Mungiu é um dos mais importantes dramas de 2013, um convite irrecusável para ir ao cinema.

In Rua de Baixo

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