terça-feira, 26 de março de 2013

Deolinda - Mundo Pequenino

Manifesto anti-inércia



Apesar de terem nascido em 2008, os Deolinda parecem veteranos nestas andanças da música e, utilizando as palavras escritas por Pedro da Silva Martins para serem cantadas pela voz doce de Ana Bacalhau, eles já “mandam aqui” e o “contrabaixo bate um tempo que habitua”.

Depois de “Canção ao Lado” (2008) e “Dois Selos e um Carimbo” (2010), a banda de Ana Bacalhau, Pedro da Silva Martins, Luís José Martins e Zé Pedro Leitão chega a este “Mundo Pequenino” com uma forma invejável, depois de extravasar fronteiras geográficas e musicais, sendo essa miscelânea cultural, aliás, uma das grandes razões para o resultado final das composições deste excelente conjunto de canções.

Fugindo um pouco da complexidade clássica do próprio universo sonoro, os Deolinda juntaram piano, bateria, sopros e outras cordas à excelência da musicalidade dos irmãos Martins e José Pedro Leitão, conseguindo uma nova tentação musical, um pecado sonoro em que a participação de gente como, por exemplo, António Zambujo em “Não Ouviste Nada”, abrilhanta de forma sublime o resultado global desta obra tocada e cantada.

Este disco segue os instintos e os sentidos de quatro pessoas que vivem a música de uma forma especial e que querem desconstruir a burocracia e outros vírus da inércia nacional. A recente (e merecida) digressão internacional resultou no conhecimento de outras realidades, outros mundos que hiperbolizaram os Deolinda, que hoje são uma banda mais consistente, mais forte, mais capaz de agitar pensamentos e maneiras de estar.

Se, num passado recente, “Parva que Sou”, por exemplo, se tornou num hino geracional, tal conquista deve-se, essencialmente, ao conhecimento conjuntural que os Deolinda detêm de uma sociedade com medo de si própria, que se alimenta desse pavor e que revela um Portugal, esse sim, diminuto de ideias e futuro. Ana Bacalhau é uma das vozes da revolta nacional contra um comodismo que abandonou o feudo suburbano e representa uma visão de portugalidade moldada por um triunvirato nascido da crise.

A primeira ideia e consequente música do disco, “Algo de Novo”, começa com um contrabaixo mandão, que se cola na perfeição à voz vibrante de Ana Bacalhau. As águas agitam-se, pede-se espaço para dançar, a música cresce devagarinho e de forma certeira, com destaque para o trabalho de percussão. As cordas ouvem-se por entre as batidas e sente-se a vontade de mudar de vida.

Logo a seguir, “Concordância” é um crescendo musical que começa com um rufar encantador e deambula por territórios repletos de metais e sopros que lembram momentos “ciganos” de Kusturica ou a mistura entre world music e rock dos norte-americanos Beirut. Também aqui a genialidade das letras de Pedro da Silva Martins deve ser ressalvada, pois este magnífico exemplo de belezas gramaticais só leva à elevação superlativa de adjetivos que qualificam a mestria da métrica poética dos Deolinda.

“Gente Torta” é mais uma crítica mordaz ao individualismo cinzento dos que abandonaram a capacidade de se equilibrar. Aqui, o contrabaixo marca toda a linha melódica e a voz de Ana Bacalhau vibra por entre os acordes de uma guitarra que se dedilha com prazer e confiança ao ritmo “baladeiro”. É também ao som das cordas que se inicia “Há-de Passar”, mais um exercício mordaz e bem-disposto sobre o “deixa andar”, uma das modalidades oficiais de um país castrado de vontade. “Há-de Passar” é, no fundo, uma ode ao conformismo, um espelho de quem se acomoda a uma realidade que, se remexida, se pode tornar em algo pior do que aquilo que simboliza.

Mas não é só de Portugal que se fala em “Mundo Pequenino”. Os violinos juntam-se aos restantes instrumentos e vive-se uma experiência vivida em África. “Medo de Mim” é o reflexo de um episódio que aconteceu aquando da viagem da banda por Joanesburgo, a fim de realizar um concerto nesta que é a maior concentração urbana de África do Sul, um país sitiado em si mesmo que incomoda e acomoda-se. A viagem continua com “Musiquinha”, um convite a abanar o esqueleto, a dançar, a afastar para longe o pessimismo e que, por certo, será uma das músicas mais ouvidas e faladas deste disco. “Está todo morto, não há motivação…ninguém se mexe, que grande seca…” - eis o espelho real de algumas situações entaladas numa conjuntura que aproveita a crise para parcelar a vida alheia e que castra, por completo, o zelo e a criatividade.

“Semafóro da João XXI” embala o espírito e a cadência valseira serve de elemento aglutinador para a união entre opostos que se encontram acidentalmente, à letra, e onde se obtém o tal “clique”, fruto do destino que marca uma qualquer hora. Depois de um momento romântico fruto de uma urbanidade sorvida a conta-gotas, “Seja Agora” é um hino à urgência, à capacidade individual de querer mudar e seguir em frente. Este, que foi o single de apresentação deste novo trabalho, é uma das canções mais excitantes e brilhantes deste “Mundo Pequenino”. Quem conseguir resistir a este doce em formato canção, que atire a primeira pedra.

Pegando na letra de “Seja agora”, urge dizer que os Deolinda estão a acontecer agora. O hype da banda de Ana Bacalhau e companhia surge neste preciso momento na maior da sua força e é preciso acompanhar o mesmo, sob pena de deixar passar um dos episódios mais bonitos da nova música portuguesa. Pois, de facto, o que tem de ser tem a força toda…

De regresso à música, “Pois Foi” é outro exemplo do crescendo musical que se observou na música da banda. Os violinos acrescentam dramatismo e na voz de Ana Bacalhau sente-se um sorriso bonito. A toada continua calma em “Balanço”, onde somos embalados por palavras saídas de um pesadelo económico magistralmente desenhado por Pedro da Silva Martins, um dos melhores escritores de canções deste cantinho entalado entre Espanha e o Oceano Atlântico.

“Doidos” afasta a letargia e avança por entre marchas e matéria feita de boa-disposição. A eternidade é uma característica física e a banda em género de fanfarra avança rua fora, país adiante. O disco termina com “Não Ouviste Nada”, uma das mais aconchegantes faixas de “Mundo Pequenino”, que cresce aquando do dueto entre Ana Bacalhau e António Zambujo e cujo refrão fala da cisma de uma possível traição. À imagem do país, e como diria Reininho na sua profissão de detetive que valsa, a desconfiança geral é fruto da pior das traições, é o resultado de quem fica fechado em si mesmo e teima em não evoluir.

Os Deolinda fazem a sua parte e agarram o futuro, pontapeando o presente bacoco para longe, numa mensagem de esperança. O que eles dizem escreve-se e canta-se, dança-se e sente-se, abraça-se e apregoa-se. Pois, afinal, quem fica é quem nos fala e nos (en)canta.

Alinhamento:

01.Algo Novo
02.Concordância
03.Gente Torta
04.Há-de Passar
05.Medo de Mim
06.Musiquinha
07.Semáfaro da João XXI
08.Seja Agora
09.Pois Foi
10.Balanço
11.Doidos
12.Não Ouviste Nada

Classificação do Palco: 9/10

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