terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

“Os Filhos dos Nazis”
de Tania Crasnianski


Até 1945, os seus pais eram heróis. Depois da derrota alemã, os seus apelidos tornaram-se atrozes. Himmler, Göring, Hess, Frank, Bormann, Höss, Speer e Mengele passaram a ser sinónimos do horror nazi, e os seus filhos ficaram com o legado de carregar esse peso.

Estas crianças que lidaram com a experiência da Segunda Guerra Mundial de forma privilegiada, com pais todo-poderosos, viveram o fim do conflito e o real impacto do mesmo como se de um terramoto se tratasse. Inocentes, desconheciam os crimes dos pais mas a realidade – e a vida – encarregou-se de lhes mostrar toda a sua horrível extensão. Uns condenaram esse passado, outros continuaram a prestar vassalagem aos ideais de alguns dos nomes mais odiados por toda a humanidade – e que ficaram conhecidos pelos seus injustificados e assassinos ideais.

Os Filhos dos Nazis (Guerra & Paz, 2016), de Tania Crasnianski, levanta um pouco o véu sobre como lidaram essas crianças com a diabolização dos seus pais, revelando o quotidiano dos filhos dos carrascos nazis que viviam paredes meias com o inqualificável III Reich mas, também, o sentimento de privação, vergonha, repúdio ou medo que resultam dessa experiência. Pelo meio surgem várias perguntas: que tipos de ligação mantiveram com os pais? Como é viver com um dos apelidos mais diabolizados pela História? Como é a vida de alguém com um passado tão assombrado e tão presente na memória colectiva?

Essa curiosidade aguça a nossa vontade de explorar um livro que se lê rapidamente e com um misto de emoções. Crasnianski dedica cada capítulo a uma criança (ou família) e levanta uma série de dúvidas que nascem de uma assertiva investigação por parte da ex-advogada e penalista. O fio condutor deste livro revela-se “esquemático”: primeiro, conta-se como se descobriu a pessoa; depois, é revelada a história do pai; por fim, como se lida com um pesado passado e se tenta reconstruir o respeito por um apelido.

O que se constata é que as relações entre estas pessoas e os seus pais variam. Enquanto uns deixam parecer, mais menos subliminarmente, que o peso do seu apelido é complicado, outros são “levianos” ao ponto de confessar algum orgulho (o caso de Gudrin Himmler é taxativo). No mínimo, estranho é também o confesso desconhecimento de alguns testemunhos face ao que os pais faziam.

Outro dos ângulos explorados por Tania Crasnianski remete-nos para uma declarada cobardia dos homens fortes do regime nazi pois, a partir da informação registada em “Os Filhos dos Nazis”, não revelaram à sua família o verdadeiro papel na dinâmica assassina do III Reich – ou a extensão dos horrores perpetrados por sua culpa. Crasnianski vai mesmo ao ponto de trazer à tona uma certa bipolaridade no exercício nas suas funções militares – e em ambiente doméstico. E, espantem-se os mais cépticos, Rudolf Höss, comandante de Auschwitz, tinha fama de ser um pai amoroso, ainda que não hesitasse em enviar crianças para as câmaras de gás.

Ainda que já tenha confessado o complicado que foi escrever um livro como este, a autora conseguiu fazê-lo com distinção, logrando, qual jornalista bem formada, relatar os factos sem opinar. Essa noção de neutralidade confere credibilidade e permite que também o leitor possa fazer a sua percepção de toda esta terrível, negra e perturbante realidade.

In deusmelivro

“O Templário Negro”
de Roberto Genovesi


Imagine uma amálgama entre 300, de Frank Miller e Lynn Varley, e Gladiador, de Ridley Scott. Agora junte doses generosas de elementos sobrenaturais. Misture bem e sirva. O prato, neste caso literário, é O Templário Negro (Clube do Autor, 2017), obra de estreia do italiano Roberto Genovesi nos escaparates nacionais, conhecido também pelo seu trabalho enquanto jornalista, guionista e autor de programas televisivos.

A trama leva-nos até ao século XII, mais precisamente a 4 de julho de 1187, data em que em plena Guerra Santa se dá um dos confrontos mais sangrentos entre cristãos e muçulmanos. O acontecimento, que ficou conhecido na História como a Batalha de Hattin, resultou numa copiosa vitória de Saladino, primeiro sultão do Egipto e Síria, que assim se apoderou da glória mas também da Vera Cruz, uma das maiores relíquias dos homens de Cristo.

Conta-se que um pedaço da Vera Cruz, uma lasca de madeira, terá sido entregue a um jovem muçulmano, de tez escura, seguidor de Alá, mas que usa uma cruz de prato ao pescoço, conhecido por Isaac, o Negro, dono de um perfil típico de um anti-herói.

Alguns anos volvidos após a Batalha de Hattin, Isaac conhece Frederico II, imperador Romano-Germânico, que lhe pede que resgate da fortaleza de Iblis todas as suas relíquias. O objectivo é guardá-las todas no Templo de Salomão, para que gente de todas as religiões e credos possa por ali passar numa verdadeira peregrinação de paz.

É sob este pressuposto e demanda que Roberto Genovesi constrói uma narrativa convincente, muito bem alicerçada em edifícios e locais cujo contexto fez nascer um excelente romance histórico, repleto de aventura, acção e como assinalável coerência. Ao longo das quase 400 páginas o leitor é guiado por uma épica sequência de acontecimentos, uma miríade de personagens, voltas, reviravoltas, descrições pormenorizadas e fé, cuja competente dinâmica e envolvência o deixa colado ao livro.

In deusmelivro

Antes de te Conhecer
de Lucie Whitehouse

As sombras de Hannah


O amor, ou a sua procura, leva-nos a imaginar cenários idílicos, sonhos tornados realidade e paixões correspondidas. E apesar das muitas desilusões vividas, a amargurada Hannah nunca desistiu de concretizar esse desejo, e o seu romance, inesperado, com Mark tinha tudo para dar certo, esperava, finalmente.

Já casados, Hannah e Mark atiram-se de cabeça a uma confortável e merecida vida em Londres. Até que um dia, Mark não regressa de uma viagem de negócios aos Estados Unidos da América e a segurança e certezas de Hannah colapsam como se fossem atingidas por um forte sismo emocional.

Preocupada, Hannah tenta saber do marido. Pergunta por Mark no hotel onde este habitualmente fica, aos seus colegas, aos seus amigos. As repostas variam entre um não saber do seu paradeiro e a eventualidade de Mark estar em Roma. Para piorar a situação, Hannah sabe que uma outra mulher também anda no encalço do seu marido. Mas as más notícias não ficam por aqui. Hannah descobre que Mark acrescentou o valor da hipoteca da casa e mexeu nas poupanças.

A tempestade abranda com o regresso de um Mark apaziguador mas as explicações não satisfazem Hannah e gera-se uma tensão que teima em crescer. Estão assim lançados os dados de Antes de te Conhecer (Bertrand, 2017), de Lucie Whitehouse, um emocionante thriller psicológico que conduz, invariavelmente, o leitor para uma situação inicial de solidariedade para com Hannah, não deixando de sentir-se também como que no meio de dois irmãos que apontam dedos um ao outro.

O ambiente, pesado, violento e denso, agudiza a confusão gerada na cabeça de Hannah devido a tantos e inesperados segredos de Mark, abalando a confiança do casal ao mesmo tempo que se esgota qualquer sentido de razoabilidade ou razão.

A narrativa leva a uma dupla encruzilhada e Hannah, e leitor, regem o pensamento no mesmo sentido. Que estará Mark a proteger? A si mesmo? Hannah? E a escrita simples, mas confiante e eficiente, de Whitehouse leva-nos a trilhar caminhos amparados pela dúvida e suspeição.

As equações sucedem-se e as soluções tardam em surgir. Quem ganha? O leitor que segue emaranhado uma estória que desafia a definição de bem ou mal, certo ou errado, sincero ou egoísta, pois Antes de te Conhecer joga com os nossos medos e coloca em causa o próprio sentido de segurança.

In Rua de Baixo

O Trilho da Morte
de Sara Blaedel

Floresta escura


Se existem escritores que têm o dom de prender o leitor logo desde as primeiras linhas, a dinamarquesa Sara Blaedel é, definitivamente, um desses nomes. Aquela que já foi apelida como a Rainha Dinamarquesa do Thriller, vem provar isso mesmo com O Trilho da Morte (Topseller, 2017), um livro que repete a cativante fórmula do antecessor As Raparigas Desaparecidas, e mergulha-nos, de novo, no universo conturbado de Louise Rick, chefe do Departamento de Pessoas Desaparecidas.

E, mais uma vez, no centro da trama está um misterioso desaparecimento. A “vítima” é Sune Frandsen, visto pela última vez na floresta de Hvalsø no dia em que completava 15 anos. Ao investigar o caso, Louise descobre que se trata do filho do talhante Frandsen, amigo de Klaus, seu antigo namorado, cujo suicídio nunca fora devidamente explicado.

Na juventude, Klaus e Frandsen pertenciam a um grupo que praticava rituais inspirados em antigas crenças nórdicas em torno de deuses nórdicos como Odin ou Thor. Quando o cadáver de uma prostituta é encontrado em Hvalsø, perto do carvalho sacrificial onde os membros deste grupo ainda hoje se reúnem, tudo leva a crer que Sune testemunhou algo que não devia, e que pode correr perigo de vida.

Mas não são apenas estas investigações que atormentam Louise. Também a nível pessoal a chefe do Departamento de Pessoas Desaparecidas tem outras questões para tratar, nomeadamente com Eik, o seu companheiro e periclitante amante, assim como de outros assuntos do passado que vão, finalmente, revelando pistas sobre os seus porquês, e que suscitam também em Camilla, jornalista e amiga de longa data de Louise, várias dúvidas.

Sob um ambiente ferido e denso, Sara Blaedel constrói uma narrativa sólida, em crescendo. As próprias investigações do caso de Sune não conduzem, inicialmente, a uma sucessão lógica de acontecimentos, mas a imposição de algumas questões de âmbito familiar podem empurrar o jovem Sune para um afastamento voluntário de uma realidade assombrada pela doença da mãe.

Blaedel aposta num desfoque do propósito do desaparecimento ou da procura de um eventual culpado, empurrando o leitor por trilhos mais emocionais, ainda que levem, invariavelmente, para destinos comuns. Isto porque Louise procura respostas que tardam a encontrar e cujas questões são sublinhadas com várias camadas de crime e violência, principalmente contra as mulheres, realidades subjacentes ao quotidiano nórdico que conferem ainda mais credibilidade a este thriller.

Mantendo uma coerência de forma e conteúdo com As Raparigas Desaparecidas, o livro que inicia esta, esperemos, trilogia — e que nos leva a suspirar pelos livros anteriores da autora e que, infelizmente, não viram, por enquanto edição portuguesa —,e esta nova aventura criada por Blaedel vive também pela sólida apresentação de personagens de carne e osso, com vidas normais, mas cuja “banalidade” é travada pelos crimes que os rodeiam, por uma realidade que pede adaptações, encaixes pessoais e emocionais, por vezes com recurso ao mitológico, àquilo que nos transcende.

In Rua de Baixo

O Polícia”
de Jo Nesbo

O lado negro da lua


As ruas de Oslo estão em sobressalto. Há um assassino à solta e tem como alvo polícias, especialmente agentes que estiveram envolvidos em investigações que se tornaram inconclusivas, sem resolução. O modus operandi é sempre o mesmo: o assassino atrai os agentes para o lugar onde o crime aconteceu e mata copiando o crime original.

O caos está lançado e especula-se sobre a possível identidade do(s) assassino(s) e quais serão os seus motivos. Para dificultar a tarefa, o cenário da recriação dos crimes fica intacto, sem qualquer pista.
Enquanto isso, um suspeito e testemunha continua em coma no hospital. Guardado 24 horas por dia, este homem pode colocar em causa Mikael Bellman, recém-chefe da polícia de Oslo e responsável pela Brigada Anticrime, organismo hoje órfão de Harry Hole, seu carismático líder, cujo paradeiro incerto leva a duvidar se sobreviveu aos dramáticos acontecimentos de “O Fantasma”, a anterior aventura do norueguês Jo Nesbo.

É assim que se desenha O Polícia (D. Quixote, 2016), o décimo livro da saga Harry Hole que Nesbo transformou num dos seus tomos mais negros e arrepiantes, com a dúvida a permanecer até às últimas páginas.

Com um enredo denso, perturbador e macabro, recheado com elevadas doses de corrupção, O Polícia mostra-nos um serial-killer empenhado em fazer justiça pelos próprios meios. Ninguém está a salvo e o perigo esconde-se onde menos se espera. Trazendo a palco a habitual “família” da saga, clã Fauke incluído, Nesbo consegue, com grande distinção, deixar o leitor em suspenso, na dúvida, desconfiado de tudo e todos.

A ideia de retirar Harry Hole de cena (ou pelo menos do primeiro quarto do livro) dá o palco a personagens habituadas a planos mais secundários como Beate Lonn, a brilhante líder forense, ou Stale Aune, o gentil psicólogo que sente saudades da adrenalina provocada pela sua colaboração com Hole, ou ainda Anton Mittet, um humilde agente designado para vigiar o paciente de hospital em coma. Também têm lugar de relevo a estreante Silje Gravsend, polícia estagiária na Politihoyskole e obcecada por Hole, assim como o velho conhecido e imprevisível Truls Berntsen, a braços com a suspensão de funções, ou o sub-humano Valentin.

Além de algumas bem-vindas surpresas, O Polícia traz também confirmações, principalmente de estilo por parte da dinâmica da narrativa de Nesbo, pois é conhecido o “carinho” com que o autor descreve e faz crescer os seus maus da fita, neste livro donos de métodos grotescos, cuja força motriz, por mais estranho que pareça, é o amor.

Ainda assim, toda esta monstruosidade fica um pouco atrás do enredo de O Boneco de Neve, um dos mais emblemáticos policiais dos últimos anos.

In Rua de Baixo

O Carrinho de Linha Azul
de Anne Tyler

Lar doce lar


Por vezes, existem livros que capturam pedaços da vida real, quotidiana, de uma forma tão crua e humana que transformam gente e acontecimentos vulgares em fenómenos extraordinariamente tocantes.
É esse talento que a norte-americana Anne Tyler consegue colocar nas páginas de O Carrinho de Linha Azul (Editorial Presença, 2017), um livro que transforma o mundano em arte através da história “simples” de uma família que respira humanidade sui generis por todos os poros.

Tyler, autora de livros como No Tempo em que Éramos Adultos, conta-nos a história da família Whitshank, um clã de gente comum, «como a maioria de nós, insuportável mas agradável». E isso transparece no perfil da maioria de personagens mergulhados nas suas vidas mas forçados a acarinhar o seu próximo, por via de comportamentos, ora complexos, ora aborrecidos, difíceis, egoístas ou apaixonados.

Através de uma escrita simples, inteligente e muito cativante, quase como que segredando os acontecimentos, Anne Tyler transforma as páginas, ou meros parágrafos, em pequenas descrições ou diálogos apontados diretamente para o âmago da nossa alma, especialmente como os personagens são apresentados de uma forma desarmante e eficaz, acrescentando como bónus finais de capítulo uma teatralidade que nos leva a imaginar um fechar de cortinas, um ponto final, por vezes parágrafo.

Desde os primeiros momentos, reconhecemos Abby, a matriarca, como uma mãe dedicada e de assinalável consciência social, e Red, seu marido, como alguém mais crítico e cético. Os quatro filhos do casal, três legítimos e outro adotado, são um misto de virtudes e problemas, como todas as «crianças, mesmo que depois de adultas». Denny é inteligente, egoísta e dono de uma rebeldia que o leva a mudar constantemente de vida; Amanda, advogada, tem uma personalidade forte e decidida, e encara os desafios de frente; Jeannie é uma pessoa discreta, muitas vezes “abafada” pelos habituais dramas da família; Stem, o adotado, e louro, que está sempre disponível para ajudar. E depois há ainda o Hugh da Jeannie, o Hugh da Amanda, as crianças de todas, as cadelas, os familiares indiscretos ou os vizinhos da casa de férias.

À medida que Abby e Red envelhecem, os problemas acentuam-se. Abby tem cada vez mais episódios de esquecimento, Red é uma pessoa mais frágil depois de um ataque cardíaco e está a ficar mais surdo. Em resposta a essa situação, os filhos decidem ajudar e mudam-se para a velha e especial casa Whitshank. Stem, primeiro, Denny depois.

Estão assim lançados os dados para o regresso de rivalidades antigas, amores nunca esquecidos e flashbacks ao passado familiar que se combinam com histórias de vida moderna. Tudo envolto do ambiente ora frio ora quente, que nem as ventoinhas do teto acalmam, de uma Baltimore tão cara a Tyler, contemporânea, descrita devagar, suavemente, apesar de alguns acessos intempestivos dos membros da família.

Para ser lido como uma espécie de álbum de família, O Carrinho de Linha Azul é um relato fascinante, pessoal e repleto de personagens fascinantes, encarceradas entre a solidariedade, o aborrecimento e a preocupação, e por vezes presas em inteligentes laivos satíricos, mas sem nunca levar Tyler a cair na tentação de um discurso facilitista.

In Rua de Baixo

Nem Todas as Baleias Voam
de Afonso Cruz

A música (não) é uma arma 


O homem sonha, a obra nasce. Se esse homem é Afonso Cruz, a obra tende a romper a normalidade e fixar-se num planeta distante onde o oxigénio é a poesia, as pessoas/personagens um veículo da mensagem e a paisagem pedaços de histórias soltas que se juntam por via de um puzzle cuja maior particularidade é uma (des)união entre as muitas partes.

E é, felizmente, essa excitante dinâmica (narrativa) que torna Nem Todas as Baleias Voam (Companhia das Letras, 2016) num dos mais curiosos e belos livros do ano transato, trazendo a palco alguns dos personagens mais extraordinários do universo de Afonso Cruz, como, por exemplo, Erik Gould, Tristan, Natasha Zimina, Gunnar Helveg, Isaac Dresner ou Tsilia.

Outro dos ingredientes que se repete é a música, e a pergunta que fica no ar é se será essa arte uma verdadeira arma para vencer uma guerra, no caso um conflito que nos remete para o cenário da Guerra Fria e para um plano desenhado pela CIA denominado por Jazz Ambassadors. A missão era cativar a juventude de Leste para a causa do Tio Sam e para isso a cúpula da agência secreta engendrou uma forma de persuasão e a ideia seria organizar uma série de concertos jazz em território soviético para assim seduzir o inimigo.

É neste contexto que surge o pianista Erik Gould, um apaixonado músico que tem os sons do mundo entranhados no corpo e alma e está empenhado em saber do paradeiro da sua desaparecida mulher e paixão, Natasha Zimina, nem que para isso tenha de transformar todas as emoções do mundo em sons escritos numa partitura. Destroçado, Gould agarra-se a uma ténue esperança e saudade e não consegue ver que Tristan, seu filho, se sente recluso de uma dor que teima em aumentar pois ao não encontrar a mãe nas páginas de um atlas se afunda ainda mais no interior de uma caixa de sapatos que se torna numa metáfora da caixa de Pandora.

É neste plano difuso, onde «a realidade é apenas uma fantasia bem penteada», que Afonso Cruz constrói (e destrói) um mundo à beira do colapso onde a música é uma espécie de boia de salvação cuja pulsação se assemelha a «um coração a bater». Um pouco perdidos sobre si próprios, os abstratos personagens de Nem Todas as Baleias Voam procuram uma orientação, nem que seja através de cicatrizes que se assemelham a mapas de tristeza que apenas servem coordenadas para a solidão.

E enquanto uns tentam respirar, outros afogam-se num oceano de impossibilidades, quais baleias à procura da sepultura. Pelo caminho, a habitual (a)normalidade continua no quotidiano da Livraria Humilhados & Ofendidos, enquanto meretrizes leem a sina, em latim, e podem ser a chave para a grande revelação que é o Evangelho das Putas Gnósticas, ou a sinestesia acaba por ser uma espécie de apelido para um inocente Tristan, sempre com o Dicionário de Sinónimos, Poéticos e de Epítetos em riste, que tem por companhia um homem de chapéu ou uma velha conhecida a quem alguns chamam morte.

Paralelamente à trama principal, o leitor é convidado a acompanhar um especial relatório de espionagem que tem Gould na mira e cujo autor é um Escritor cujas musas são três vozes repletas de dor que são, no fundo, o seu mote e inspiração. Através desta miscelânea impressionista, Afonso Cruz edifica um belo romance e descodifica várias formas de solidão, esperança e também de bondade, cujos móbeis se articulam com uma particular noção de complexidade, ainda que em ritmos mais calmos que noutras ocasiões, transformando este livro numa melancólica viagem em ritmo de cruzeiro.

In Rua de Baixo